Por Michele Calliari Marchese
Aos oriundos do Oeste Bravio de Santa Catarina
Esse causo aconteceu na
Campina da Cascavel, deveras distante de tudo, poderia dizer que é um Universo
único, dada a quantidade de causos sem explicação e misteriosos que acontecem
por essas bandas.
Aconteceu no inverno. O
inverno mais frio de que se tinha notícia, tinha geada todo dia e que durava o
dia todo; para pegar água no rio tinha que levar o martelo junto para quebrar a
crosta de gelo que se formava em cima. A roupa lavada ficava dura em cima das
pedras, e já as lavadeiras não iam mais lavar as roupas porque se quebravam
todas com o frio. Tiveram que guardar os bichos dentro dos galpões e fechar as
portas porque senão morriam todos congelados. O que não tinha era
ovelha. Já tinham usado todas para confeccionar as botas e roupas para
suportarem o inverno rigoroso e a gordura para animarem o fogo do fogão e dos
ferros de passar. Quase ninguém saía de casa.
Só o Laudemir.
Laudemir era chofer de
caminhão, o único fenemê da região, orgulho dele. Carregava a madeira que era
tirada e levava até o Rio Uruguai para seguirem de balsa até a Argentina. Para
fazer o caminhão pegar, ele já estacionava dentro do galpão, e depois acendia
uma fogueira próxima para esquentar e não deixar o óleo congelar. Quando
pegava, deixava uns bons minutos ligado e carregava a cabine com cobertores de
pena de ganso para por em cima das pernas.
Já estava na metade do
caminho, entre a Campina e o Rio Uruguai quando se deparou com um velório. Era
uma exéquia muito triste de se ver, todos estavam de luto e lamentavam muito a
morte do morto, proferindo orações e rezando o terço, devia ter perto de umas
cem pessoas seguindo o caixão. Um padre encabeçava o féretro, dando sequencia à
esposa, aos filhos varões e as filhas. Depois umas gentes ora simples, ora de
posses. E estava muito frio.
Laudemir já estava atrás do
enterro umas duas horas, e não passava uma viva alma por ali, até que resolveu
ver onde é que ficava o cemitério e quem sabe, levar o morto para aliviar a
carga dos quatro carregadores. Informaram que ainda tinha mais ou menos uns
três quilômetros para caminharem e se ele estava mesmo disposto a levar o
esquife, seria um alívio. Foi o que ele fez. Amarrou o caixão junto com as
toras, bem amarradinho e ainda deu carona para a viúva, que, muito triste,
preferia não falar. Parecia não sentir o frio, por causa decerto de tanta
tristeza. Colocou os cobertores nas pernas dela e seguiu em frente.
Soube que o morto se chamava
Coronel Cesario Soares Lopes da Silva e que tinha morrido dos males do coração.
Tinha lutado muitas batalhas e fora condecorado com muitas medalhas do império.
Era um homem muito bom e todos o queriam muito bem. Mas que, no leito de morte,
tinha exigido ser enterrado junto com os índios, lá no meio do mato. E é para
lá que estavam indo.
Laudemir teve que sair da
estrada geral e entrar no meio da mata, e andou até onde que foi possível andar
de caminhão. Quando não pode mais seguir adiante, o enterro seguiu mata
adentro, a pé. Laudemir deu as condolências e pêsames para as pessoas que
ajudaram a tirar o Coronel de cima das toras e voltou para a estrada.
Estava impressionado.
Quando chegou ao Rio Uruguai,
os amigos perguntaram como tinha sido a viagem e Laudemir contou o que tinha
acontecido.
Todos ficaram muito
interessados até que um senhor já de idade que estava passando por ali ouviu
sobre o Coronel e disse: “Sinhô, esse coroné já morreu há muitos e muitos anos,
eu inda era bacuri e sempre escuito que algum chofer acompanha o enterro até o
meio dos mato. O coroné tá enterrado no sumitério da Campina das Cascavé,
deferente do que tinha pedido na morte, e eu acho que é por isso que o coroné
qué que continuem a enterrar ele lá com os índio. Vai lá vê.”
Foi o que Laudemir fez quando
voltou para casa. Não precisou andar muito para encontrar a tumba do coronel e
ao lado da foto dele, uma foto muito velha e gasta da viúva, coberta pela geada
intermitente. Além do arrepio que não passava e do suor gelado que corria pela
testa e ali ficava, percebeu que a esposa havia morrido dez anos antes do
marido, justamente aquela a quem dera carona para enterrar o marido.
Algum tempo depois o governador
do Estado resolveu por bem fechar a estrada geral, pois tinha passado um susto
muito grande quando de visita ao Coronel Bormann em Xapecó. Ninguém nunca soube
o que tinha acontecido.
Só o Laudemir.
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