segunda-feira, 29 de outubro de 2012

TRAGÉDIA DOMÉSTICA & OUTROS







TRAGÉDIA DOMÉSTICA
(microconto)

Ela, em plena TPM e há mais de meia hora falando com a mãe ao telefone, ouve: querida, já tinhas posto sal no ensopado?




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O MENINO QUE AMAVA CARROS
(microconto)

Ele era um menino alegre que amava a vida e desenhava carros e mais carros e hoje é um competente Médico Legista, entristecido com o número crescente de vítimas do trânsito.






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LIMITE
(microconto)

Beirando perigosamente o precipício, gabava-se o montanhista por nunca haver caíííííído...






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ERRO FATAL
(microconto)

Ele exagerou na dose para prisão de ventre e andou apressadamente no meio da manhã, porém chegou meio tarde.

  



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FIDELIDADE
(microconto)

Ele foi fiel por mais de trinta anos, até que um dos dois morreu: seu barbeiro.


  



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QUEM TEM MEDO DE FANTASMA?
(miniconto)

Todo mundo temia aquela casa, dita assombrada, menos Pedro, que resolveu tirar a limpo, passando uma noite lá e, de fato, foram horas de vultos brancos, gemidos tétricos e sussurros congelantes, mas ele agüentou firme e, antes do amanhecer, provada a sua coragem, retornou para sua cova, no cemitério municipal.





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Obrigada, Reneu, por enriquecer nosso espaço com uma amostra de sua prosa. Com esta postagem encerramos a primeira rodada de convites, neste mês de outubro. Obrigada também a Meriam, José Cláudio e Marina pelas participações. A próxima rodada de convites acontecerá em dezembro, se Deus permitir, é claro. A cada segunda-feira teremos um convidado ou convidada especial. Obrigada também a você que muito nos honra com sua leitura e participação. Volte sempre! Em breve estaremos disponibilizando uma versão do SEM VERGONHA com alguns textos 'para levar', aguarde!

Um abraço fraterno,

Helena e Michele
As donas do Blog! ;-)




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segunda-feira, 22 de outubro de 2012

CORRESPONDÊNCIA





Maria Eulália acordou cedo. Aprontou-se na roupa de montaria e pediu a Evaristo, peão da fazenda, que arriasse o cavalo tordilho. Ia ao povoado cumprir um hábito de toda sexta-feira: buscar as encomendas e cartas que chegavam de São Paulo pelo trem das 9. Estava ansiosa. E sabia bem qual a razão: ia buscar certa missiva que há muito vinha sendo objeto de seus mais profundos anseios.
Lalinha, como era chamada Maria Eulália, era a filha mais nova de Dona Narcisa e do coronel Tavico Noronha, fazendeiro afamado pela cultura do café, na região de Várzea de Dentro. A moça tinha nascido e crescido ao lado dos quatro irmãos e das duas irmãs ali na fazenda Água Limpa e estava agora com dezoito anos.
Em meio à vida rude da fazenda, Lalinha cozinhava seu descontentamento: não aceitava o jeito turrão do pai e a estupidez daquela gente do lugar, sempre às voltas com as lidas da roça, se conformando, quando muito, com as quermesses da igreja, as festas do padroeiro ou uma folia de Reis, em meados de janeiro. Ela queria mais, sonhava alto. Era bonita. Talvez a moça mais bonita daquelas redondezas, e sabia disso: e tanto se olhava, mais se convencia dos belos dotes com que fora agraciada. Prova disso, eram os frequentes e cobiçosos olhares dos peões sobre ela, rapidamente desviados por temor ao coronel.
E como destoava do resto da casa, a linda mocinha! Os irmãos desde cedo pegaram suas responsabilidades junto ao pai; as irmãs se dedicaram ao aprendizado das prendas domésticas. Mas a caçula, para desgosto da família, não se vergava, fugia aos moldes. Passava o tempo fechada no quarto, a ler as revistas que as primas lhe enviavam da Capital. Ah, o mundo do cinema! As casas de chá, os desfiles de moda, os artistas de olhos lânguidos e nomes complicados. Lia. Lia sofregamente cada linha que lhe chegava às mãos. Tinha fé que um dia faria parte daquele mundo! E já sabia por que caminho: o casamento! Haveria de se casar com um homem que lhe proporcionasse tudo com que sonhava.
Lalinha folheava a última edição da revista “Glamour”, quando deparou com o anúncio que lhe chamou a atenção: “Rapaz de boa aparência, situação financeira bem definida, gentil e educado, procura moça bonita e séria para futuro compromisso.” Ela mal podia crer! Era o homem, bem ali! Ia perder a oportunidade? Só se fosse doida! Sem mais delongas, ela fez a carta: letra bonita, papel bordado, cheirando a Água-de-flores. São Paulo, Avenida das Palmeiras! Que imponência! Já se via morando no luxuoso endereço, quem sabe, numa suntuosa casa cercada de lagos e jardins... Ah, e passeando de carro pela cidade imensa, conhecendo os melhores lugares, as lojas mais caras...
A resposta de Frederico, assim se chamava o rapaz, não se fez por esperar. Na sexta-feira, Lalinha pôde apertá-la contra o peito, lendo e chorando de alegria pelas palavras gentis de seu galante pretendente! Tinha dado certo! Ele se dizia encantado pela carta recebida, pelo retrato que o deixara apaixonado. O namoro estava combinado. Iam se corresponder!
O tempo ia passando e Lalinha mantinha seu segredo. Sempre às sextas, as tão esperadas cartas. Mas os pais sequer suspeitavam. Jamais permitiriam coisa tão descabida. A moça já podia até antever o coronel numa explosão de cólera a gritar para meio mundo:
— Santa Cruz da Estrada! Menina sem miolo! Onde já se viu um despautério desse? Namorar sem conhecer a pessoa! Rapaz  bom é o Teófilo, filho do compadre Indalécio, gente conhecida, sem defeito... Mas esse a destrambelhada não quer!
E Lalinha? Voava ao sabor dos sonhos. Frederico lhe contava coisas tão bonitas nas cartas! Falava dos lugares por onde viajava a cuidar dos negócios. Jurava que um dia ainda a levaria para ver o mundo. Quem sabe no fim do ano pudessem fazer uma surpresa para os pais dela? Ele poderia aparecer para o Natal e pedi-la em casamento... Tinha planos sérios... Então, o que ela, Lalinha, achava da idéia?
Adorável idéia, ela repetia para si, a apertar a carta contra o peito. Frederico tinha toda razão. Era mesmo uma tonta não permitindo que os pais soubessem dos laços de amor que os uniam há mais de um ano. Ninguém supunha que as cartas de sexta-feira não fossem só as das primas. Quem poderia imaginar que ela, mocinha sonsa e reservada, estava de namoro firme em São Paulo? Ninguém! Mas já era hora de todo mundo saber... Tinha escrito a Frederico contando da decisão de revelar seu segredo à família. Daí, a aflição pela resposta dele,  quem sabe até já confirmando viagem...
Cabeça nas nuvens, respiração ofegante, assim que chegou à estação, Lalinha correu para a caixa de correspondências. Ansiosa, deslizou os dedos pelo vão do pequeno compartimento. Um grito, um susto: nada! Meu Deus, não tinha carta de Frederico! O que teria acontecido? Maria Eulália viu tudo rodar! Zonza, sentou-se num banquinho, junto à janela. “Calma, calma!” disse a si mesma tentando se controlar, “Também não é o fim do mundo, pode ser só um atraso, um transtorno com os trens, com os correios, vá se saber...”
Porém, o que Lalinha não sabia é que voltaria, em muitas sextas-feiras, de mãos vazias para casa. As cartas sumiram, “exalaram”, como diria a avó Mariquinha, pelos menos as do pretenso noivo. Tristeza, agonia, solidão... A moça não sabia o que pensar. Por quê? Que motivo haveria para seu grande amor agir daquela maneira? Quem sabe uma tragédia, uma doença... Ai, não queria nem pensar! Resolveu: não ia desistir! Não deixaria de escrever uma semana sequer. Confiava que um dia a resposta chegaria. Mais cedo ou mais tarde, Frederico haveria de dar sinal de vida...
Sinal de vida! Ah, fim da agonia! A mão vasculhou o fundo da caixinha e trouxe a carta. Lá estava a bendita, pondo fim aos sofridos dias de angústia. Fechou os olhos, voltou a abri-los, e, lentamente, pousou-os no verso do envelope. Em sobressalto, levou a mão ao coração, pensou que fosse morrer: no papel pardo da própria carta devolvida, um carimbo, e a frase curta, que a fez gelar “Detento transferido de penitenciária”. 




Na próxima segunda, convidado especial para fechar a primeira rodada com micro-contos de ouro. Confira!


Clique aqui para ouvir uma versão deste causo.


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segunda-feira, 15 de outubro de 2012

O DISCO DE VINIL


Certa vez lá em Jacaraípe, no Espírito Santo, o rio que deságua na praia trazia muito lixo e trouxe um disco, desses antigos LPs só pela metade. Ele veio descendo na água e agarrou num barranco, de forma que a água ia batendo por baixo lhe fazendo rodar. Então, no dia do acontecido houve uma chuva e caiu um graveto bem ao lado como se fosse um braço de agulha de uma vitrola e ficou riscando o disco. A beira do rio ficava cheia de gente com suas varinhas de pescar e proseando enquanto aguardava uma beliscada de algum peixe distraído ou faminto por uma minhoca.  Eu ia sempre lá jogar a minha varinha nem que fosse só para lavar as iscas, pois de pesca não sou lá muito bom. Então, quando se fez aquele silêncio misericordioso que os pescadores se impõem nos seus rituais, havia um som estranho. Repetitivo, chiado e muito estranho. Eu fui caminhando em direção àquele ruído, até que avistei o pedaço de disco rodando com o graveto lhe riscando os sulcos. Você não acredita que dava para a gente ouvir um trechinho da música? Ficava só repetindo assim: "...você não dorme mais no meu colchão, você não dorme mais no meu colchão, você não dorme mais no meu colchão...”  Só não deu para ler o nome do autor. Acho que a água havia apagado aquele miolo do disco aonde vinham escritos os nomes das músicas. Depois de um tempo, para não perder a credibilidade, voltei lá na cidade, fiz um relatório, colhi as assinaturas das testemunhas presentes no dia do acontecido e entreguei ao prefeito para que ficasse registrado. Só não sei se ainda está guardado nos arquivos do município.



Muito obrigada, José Cláudio. E na próxima segunda-feira teremos outra convidada especial. Não perca!


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segunda-feira, 8 de outubro de 2012

O COPO QUE FILOSOFAVA



Era um copo de garrafa verde cortada. Cabia nele um mundo de especulações, ideias e soluções para qualquer espécie de problema. Quando à mesa, acompanhava o passar das mocinhas sorridentes, que andavam aos pares, trios, quartetos, cheias de assunto e muita alegria, lançavam olhares furtivos e se retraiam como convém à idade de menina-moça.
O copo topava todas. Cheio até a borda das mazelas do mundo se empenhava em destilada filosofia. Suas anedotas, declarações e discursos (copos adoram discursar!) eram a graça do lugar até certa hora. Depois de trair e ser traído, lá pelas três da madrugada, ninguém mais ouvia ou se importava com o copo. Era a vez da vassoura e do “pé-na-bunda”. Do contrário, o copo amanheceria como de fato amanhecia.
Um dia o copo foi atravessar a rua e conheceu uma taça! A taça se dizia poeta... Apaixonaram-se à primeira gota. Mas com o tempo era tanta lágrima que o copo foi se enchendo e transbordou. Foi assim que caiu num bueiro, até que reciclado virou CD. As canções? Nem se fala...



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