Maria Eulália acordou cedo.
Aprontou-se na roupa de montaria e pediu a Evaristo, peão da fazenda, que
arriasse o cavalo tordilho. Ia ao povoado cumprir um hábito de toda
sexta-feira: buscar as encomendas e cartas que chegavam de São Paulo pelo trem
das 9. Estava ansiosa. E sabia bem qual a razão: ia buscar certa missiva que há
muito vinha sendo objeto de seus mais profundos anseios.
Lalinha, como era chamada
Maria Eulália, era a filha mais nova de Dona Narcisa e do coronel Tavico
Noronha, fazendeiro afamado pela cultura do café, na região de Várzea de
Dentro. A moça tinha nascido e crescido ao lado dos quatro irmãos e das duas
irmãs ali na fazenda Água Limpa e estava agora com dezoito anos.
Em meio à vida rude da
fazenda, Lalinha cozinhava seu descontentamento: não aceitava o jeito turrão do
pai e a estupidez daquela gente do lugar, sempre às voltas com as lidas da
roça, se conformando, quando muito, com as quermesses da igreja, as festas do
padroeiro ou uma folia de Reis, em meados de janeiro. Ela queria mais, sonhava
alto. Era bonita. Talvez a moça mais bonita daquelas redondezas, e sabia disso:
e tanto se olhava, mais se convencia dos belos dotes com que fora agraciada.
Prova disso, eram os frequentes e cobiçosos olhares dos peões sobre ela,
rapidamente desviados por temor ao coronel.
E como destoava do resto da
casa, a linda mocinha! Os irmãos desde cedo pegaram suas responsabilidades
junto ao pai; as irmãs se dedicaram ao aprendizado das prendas domésticas. Mas
a caçula, para desgosto da família, não se vergava, fugia aos moldes. Passava o
tempo fechada no quarto, a ler as revistas que as primas lhe enviavam da
Capital. Ah, o mundo do cinema! As casas de chá, os desfiles de moda, os
artistas de olhos lânguidos e nomes complicados. Lia. Lia sofregamente cada
linha que lhe chegava às mãos. Tinha fé que um dia faria parte daquele mundo! E
já sabia por que caminho: o casamento! Haveria de se casar com um homem que lhe
proporcionasse tudo com que sonhava.
Lalinha folheava a última
edição da revista “Glamour”, quando deparou com o anúncio que lhe chamou a
atenção: “Rapaz de boa aparência, situação financeira bem definida, gentil e
educado, procura moça bonita e séria para futuro compromisso.” Ela mal podia
crer! Era o homem, bem ali! Ia perder a oportunidade? Só se fosse doida! Sem
mais delongas, ela fez a carta: letra bonita, papel bordado, cheirando a Água-de-flores.
São Paulo, Avenida das Palmeiras! Que imponência! Já se via morando no luxuoso endereço,
quem sabe, numa suntuosa casa cercada de lagos e jardins... Ah, e passeando de
carro pela cidade imensa, conhecendo os melhores lugares, as lojas mais caras...
A resposta de Frederico, assim
se chamava o rapaz, não se fez por esperar. Na sexta-feira, Lalinha pôde
apertá-la contra o peito, lendo e chorando de alegria pelas palavras gentis de
seu galante pretendente! Tinha dado certo! Ele se dizia encantado pela carta
recebida, pelo retrato que o deixara apaixonado. O namoro estava combinado. Iam
se corresponder!
O tempo ia passando e Lalinha mantinha
seu segredo. Sempre às sextas, as tão esperadas cartas. Mas os pais sequer
suspeitavam. Jamais permitiriam coisa tão descabida. A moça já podia até antever
o coronel numa explosão de cólera a gritar para meio mundo:
— Santa Cruz da Estrada! Menina
sem miolo! Onde já se viu um despautério desse? Namorar sem conhecer a pessoa! Rapaz
bom é o Teófilo, filho do compadre
Indalécio, gente conhecida, sem defeito... Mas esse a destrambelhada não quer!
E Lalinha? Voava ao sabor dos sonhos.
Frederico lhe contava coisas tão bonitas nas cartas! Falava dos lugares por
onde viajava a cuidar dos negócios. Jurava que um dia ainda a levaria para ver
o mundo. Quem sabe no fim do ano pudessem fazer uma surpresa para os pais dela?
Ele poderia aparecer para o Natal e pedi-la em casamento... Tinha planos sérios...
Então, o que ela, Lalinha, achava da idéia?
Adorável idéia, ela repetia
para si, a apertar a carta contra o peito. Frederico tinha toda razão. Era mesmo
uma tonta não permitindo que os pais soubessem dos laços de amor que os uniam há
mais de um ano. Ninguém supunha que as cartas de sexta-feira não fossem só as
das primas. Quem poderia imaginar que ela, mocinha sonsa e reservada, estava de
namoro firme em São Paulo? Ninguém! Mas já era hora de todo mundo saber... Tinha
escrito a Frederico contando da decisão de revelar seu segredo à família. Daí,
a aflição pela resposta dele, quem sabe
até já confirmando viagem...
Cabeça nas nuvens, respiração
ofegante, assim que chegou à estação, Lalinha correu para a caixa de
correspondências. Ansiosa, deslizou os dedos pelo vão do pequeno compartimento.
Um grito, um susto: nada! Meu Deus, não tinha carta de Frederico! O que teria
acontecido? Maria Eulália viu tudo rodar! Zonza, sentou-se num banquinho, junto
à janela. “Calma, calma!” disse a si mesma tentando se controlar, “Também não é
o fim do mundo, pode ser só um atraso, um transtorno com os trens, com os
correios, vá se saber...”
Porém, o que Lalinha não sabia
é que voltaria, em muitas sextas-feiras, de mãos vazias para casa. As cartas
sumiram, “exalaram”, como diria a avó Mariquinha, pelos menos as do pretenso
noivo. Tristeza, agonia, solidão... A moça não sabia o que pensar. Por quê? Que
motivo haveria para seu grande amor agir daquela maneira? Quem sabe uma
tragédia, uma doença... Ai, não queria nem pensar! Resolveu: não ia desistir!
Não deixaria de escrever uma semana sequer. Confiava que um dia a resposta
chegaria. Mais cedo ou mais tarde, Frederico haveria de dar sinal de vida...
Sinal de vida! Ah, fim da
agonia! A mão vasculhou o fundo da caixinha e trouxe a carta. Lá estava a bendita,
pondo fim aos sofridos dias de angústia. Fechou os olhos, voltou a abri-los, e,
lentamente, pousou-os no verso do envelope. Em sobressalto, levou a mão ao
coração, pensou que fosse morrer: no papel pardo da própria carta devolvida, um
carimbo, e a frase curta, que a fez gelar “Detento
transferido de penitenciária”.
Na próxima segunda, convidado especial para fechar a primeira rodada com micro-contos de ouro. Confira!
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