terça-feira, 2 de outubro de 2012

O Sobrepeso



Por Helena Frenzel

Olhe que o peso nunca deu dor de cabeça a Seu Chico e a boa forma nunca o abandonou. Corria, nadava, fazia ciclismo, sempre comeu de tudo sem moderação por ter bom metabolismo nem tendência a engordar; não bebia nem fumava, era um homem quieto, era um homem bom; há anos mantinha um físico invejável, até mesmo quando parou de se exercitar, depois de casado.
A esposa, essa sim, vivia em contenda com as balanças, tudo fazia para manter o corpo de ex-miss.
Belo dia, porém, chega em casa Seu Chico relatando à mulher: tinha que fazer algo urgente para emagrecer, a balança de sua firma acusara-lhe seis quilos a mais. Seis quilos onde?, perguntou-lhe admirada, sobrepeso nele não se deixava ver, nem ao menos um ‘pneu’. Se a balança mentira, perguntaram a outras várias e de todas, a mesma conclusão: seis quilos mesmo! Um para cada ano de casado, tempo que ele passou sem se pesar, podia-se dizer.
Procurar um médico foi o próximo passo e internado o Chico ficou. Sendo homem rico, sendo homem bom, os médicos até se esforçaram mas minuciosos exames nada acusaram de anormal. Monitoraram-lhe o peso e notando que em nada se alterara, mandaram-no pra casa seguir a vida normal.
Pouco tempo depois, porém, no sétimo aniversário de casamento, à tardinha, às seis, Chico sentou-se em frente a um aparelho de tevê para assistir a não sei o quê e lá ficou até que o levantaram: do sofá para o necrotério e de lá para o caixão.
No dia do enterro, choravam muito os filhos, a viúva — com um vestido preto revelador — e os amigos mais íntimos, que durante o cortejo, sete vezes deixaram escapar as alças do caixão e suavam tanto, curvados, como se estivessem carregando um peso do além.
De todo modo, legistas tiveram que examinar o corpo antes de liberá-lo para o enterro, precisavam saber como Seu Chico morreu. Se decifraram a causa real da morte, isso ninguém soube; certo é o burburinho que deu: no crânio do falecido, de dentro pra fora, duas perfurações se abriram e, aos pouquinhos, saliências ósseas começaram a tomar lugar, até que do cadáver não saiu mais nada, nem inchaço nem odor.
Por tratar-se de fenômeno jamais visto, pediram o corpo para estudos. “Homem santo como Chico tem que ir todo pro caixão!”, disse a mulher, determinada. E na funerária, até que tentaram arrumá-lo ‘inteiro’, mas não houve jeito de acomodá-lo num caixão normal. Daí a família concordou que o mutilassem, desde que as partes fossem junto, no caixão. Foi como descobriam o mistério do sobrepeso, pois que em quilos, cada chifre pesava três.
Que a viúva não era santa, todo mundo já sabia, mas que Seu Chico era o diabo souberam só depois, ao abrirem o testamento — o chifrudo entre os mortais! Em disputa pela herança — e ele tinha o mundo pra deixar, diziam — surgiram bastardos, mulheres, falcatruas e muita corrupção. "É que o diabo se esconde nos detalhes", disse o advogado, "e também nos homens bons ".





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