segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Ultimate Diluvium* ou O Bígamo Naufragado



Por Michele Calliari Marchese

Oras, todo mundo sabe da catastrófica localização geográfica da Campina da Cascavel de modo que não seria novidade alguma o grande aguaceiro acontecido no início do século passado.
Começou quando a Dona Silvia estendia as roupas brancas do marido no varal de bambu. Fazia um calor dos diabos e não tinha vento.
Era um mormaço que vinha de baixo, da terra, e que não dava tréguas ao suor que escorria pelas pernas, cuja saia estava feita em um nó próximo aos joelhos para suportar o calor da lavação. Estava tão cansada e traída que acabou tendo uma vertigem e caiu de costas no chão quente. A luminosidade não permitia que abrisse os olhos, mas com as mãos postas no rosto pôde vislumbrar as nuvens escuras e grossas que avizinhavam.
Levantou num ímpeto, desamarrou a saia e saiu correndo pegar a ramagem benta pelo padre e queimá-la na frente da futura tormenta.
Toda vez que saía da casa tinha que acender a chama na ramagem no fogão a lenha — um vento tépido lhe soprava e apagava o fogo. Assim foram repetidas vezes, tantas que não percebeu que os ramos bentos já se tinham extinguido durante o entra e sai. Bufou e foi recolher a roupa do marido que estava seca.
As nuvens carregadas e ameaçadoras estavam cada vez mais perto e ela não tinha mais com o que benzer, mas decerto que alguma vizinha já estava fazendo o que ela não conseguira fazer. Tranquilizou-se e notou a falta de um dos tamancos do marido. Onde estaria? E começou um vento que ventava metade para baixo quente e metade para cima, frio. Não sabia que sensação agradável — porém doída nas orelhas — era aquela que experimentava naquele momento. Sentiu uma precipitação dentro de si, uma vontade de largar tudo e ir com o vento, mas lembrou-se do tamanco desaparecido e voltou a si. O marido precisaria do sapato, pois só tinha aquele.
Agachou-se para procurar, em vão. Além das saias que levantavam com o vento, as roupas secas insistiam em sair dos braços e seus cabelos já estavam desgrenhados a ponto de Dona Silvia não saber mais em que pensar: se na traição, se no sumiço do tamanco, se no desembaraçar dos cabelos ou na tormenta que estava prestes a cair.
Pior mesmo era a desaparição do tamanco do marido.
O homem era um atormentado. Era exigente demais, chato demais, e ainda por cima o dito era bígamo. Bígamo. Foi a comadre que contou num sussurro e Dona Silvia levou quase um mês para saber o que “bígamo” significava, e quando soube levou um susto tão grande que não quis nem saber quem era a outra. Ficou pensando e pensando e pensando e agora com o tamanco sumido, poderia lhe atirar na cara a bigamia. Que tivesse perdido o tamanco na casa da outra e voltara com um pé no limpo. Que fosse lá e que ficasse em definitivo.
Mas não. Voltou com os dois pés, sujos, dentro dos dois tamancos, também sujos, para que ela e não a outra lavasse os bandidos. Resolveu jogar o par limpo fora, no rio, naquela parte bem funda. Mas o maldito boiou e veio tal qual terneiro a mamar na teta, devagarzinho que dava ódio.
Resolveu cavar um buraco e enterrar o calçado. Largou as roupas que saíram voando em redemoinho. Tentou agarrá-las, mas o buraco era mais importante.
Enterrou o tamanco do bígamo o mais fundo que pôde e foi para casa suja, com poeira a lhe arder os olhos e com a alma lavada. Sentia que podia tudo, até com a borrasca que desabaria em seguida. As nuvens estavam bem acima de sua cabeça e havia anoitecido sem ela perceber. Só notou que os cabelos caíram em seus ombros como uma assombração; o vento tinha parado.
Justamente nessa hora o marido chegou a reclamar dos tamancos. Ela deu uma última espiada para o tempo e disse ao marido que os sapatos estavam secando em cima das pedras do rio e que ele podia pegá-los se quisesse, pois que ela estava atrapalhada com as roupas.
No mesmo instante que os dois cruzaram a porta, ela quando entrou e ele quando saiu, ele percebeu que não havia roupa alguma nos braços da mulher, mas duvidou, porque naquele exato momento a porta se fechou a tranco e a tempestade desabou. Não via nada nem a um palmo do nariz. Era desesperador.
Dona Sílvia exclamava prazerosamente em cada janela que fechava: “Enfim, o dilúvio”. E o bígamo que corria naufragando e cego pela chuva sempre atrasado a chegar às janelas, sufocava com a água que caía ininterruptamente tentando dizer “me deixe entrar”.


*Do latim: “finalmente, o dilúvio”.





Copyright 2012 (c) - Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão da autora.

Um comentário:

  1. Joia! Os alunos adorarão esta história e com certeza será um ótimo tema de aula.

    ResponderExcluir

Caro(a) Leitor(a), comentários são responsabilidade do(a) comentarista e serão respondidos no local em que foram postados. Adotamos esta política para melhor gerenciar informações. Grata pela compreensão, muito grata por seu comentário. Um abraço fraterno, volte sempre!