sábado, 30 de março de 2013

Um bom causo se começa na bodega



Por Michele Calliari Marchese

Um bom causo se começa na bodega.
Era o que sempre falava o compadre Rui.
Não acreditava que bons causos se contam do nada, de dentro de casa ou simplesmente da cabeça. Tinha que começar na bodega. Diferentemente do que pensava seu amigo Olavo, escritor e contador de causos que dizia que qualquer tipo de causo, seja ele bom ou ruim, começava no dia a dia e no pensamento; bastava-lhe pouco para que escrevesse qualquer coisa.
O compadre Rui acabava-se de rir com tanta barbaridade que o amigo contava e dizia que era ali, na mesa do bar que se tinha inspiração para lembrar-se de passados já esquecidos e que aquilo dava o caldo para um conto bom.
O Olavo ficou enfezado e pediu então ao compadre que contasse um causo naquele momento e imediatamente. 
“Só depois de dois dedinhos de cachaça.” Disse o compadre com um sorriso sarcástico nos lábios.
Vários dedinhos depois, quando a conversa já versava sobre a dita plantação do Fioravante e de sua excomunhão na frente de todo mundo que o compadre Rui teve um estalo, de língua e de pensamento. Pediu ao Olavo uns minutinhos para desanuviar a mente e que logo em seguida contaria um causo dos bons, daqueles que se começa numa bodega.
O escritor se empertigou todo para ouvir, mas o dono do estabelecimento precisava fechar por que no dia seguinte seria o domingo de Páscoa e ele queria acordar cedo para a Missa.
O Rui prometeu que contaria em uma próxima oportunidade o tal do “bom causo de bodega”.
O compadre Rui foi para casa — meio torto em cima do seu cavalo — e o Olavo ainda ficou uns bons minutos em frente à bodega fechada, pensando e matutando e por fim decidiu que a conversa que tinham tido é que daria uma boa história. Uma história sobre um causo que deveria ser bom porque tinha nascido ali.
Intempestivamente escreveu e passou a noite acordado escrevendo, apagando, amassando folhas e tendo a ansiedade a lhe ditar as palavras. Pronto. Faltava-lhe um título e este tinha vindo logo no começo daquela conversa com o compadre: “Um bom causo se começa na bodega”. Estava resolvido. Confiante com a obra guardou os rascunhos no bolso da camisa suada e foi dormir, mas a esposa já tinha se levantado para a Missa e exigia que o Olavo criasse vergonha na cara e fosse tomar banho que não tardariam em sair.
O Olavo — meio bêbado — jogou a camisa no chão do banheiro, fez tudo o que precisava fazer e saiu com a mulher. Na volta, ela pegou as roupas que estavam no chão, gritou alguns impropérios ao marido que já dormia no sofá da sala com sapato e chapéu e foi cuidar da casa e das roupas sujas.
Os dias passaram e os compadres deveriam se encontrar na bodega para jogar “tri sete” naquele dia. O Olavo fez questão de vestir a mesma camisa porque sabia que os rascunhos estavam bem guardados no bolso e sequer percebeu que a camisa estava cheirosa e passada e tampouco se lembrava da história, pois que ela havia sido concebida na bodega e sob os efeitos da noite mal dormida e dos martelinhos tomados durante a discussão. Lembraria-se da história assim que a lesse. Era um conto bom, disso se lembrava.
Pois apareceu o compadre Rui, todo afobado a arrastar cadeiras e desculpando-se pelo atraso dele no jogo.
Quem começou a conversa foi o Olavo, que lhe perguntou à queima roupa onde estava aquela história do último encontro, e o compadre respondeu que lembrava vagamente do que tinha para contar naquela noite e era mais ou menos assim: “Uma história sobre um causo que deveria ser bom porque tinha nascido ali, e tinha até título: Um bom causo se começa na bodega.”
O Olavo no instante em que chamava o compadre de plagiador tirava do bolso da camisa vários papeizinhos rasgados e sem nada escrito e ia depositando-os em cima da mesa com os olhos incrédulos diante da morte do conto.
O compadre ficou nervoso, porque “plagiador” era uma palavra inexistente no seu vocabulário e com certeza significava alguma afronta, pois que tinha sido dita aos gritos. Partiu para cima do Olavo e a briga foi feia.
Quem serenou os ânimos foi o dono do boteco que resolveu as coisas com um facão em riste. Deu de graça um copo de cachaça para cada um e mandou fazerem as pazes. “Onde já se viu gente que é compadre ficar brigando por bobagens.”
Depois das pazes o Olavo e o compadre Rui seguiram bebendo e conversando sobre a morte do marido da Dona Silvia até que o Rui falou: “Esse é um tipo de causo dos bons, daqueles que nascem na bodega.” E o Olavo tomou todo o conteúdo do copo de um gole só. Desculparia essa afronta, mas só naquele dia.




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2 comentários:

  1. Ainda bem que teve um final feliz! E virou mais um bom 'causo.'

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  2. Pois não é, comadre Michele, assim é que nasce um causo: na botica, na bodega, na patente, ao pé de um muro e por aí vai. Difícil não é ter a idéia, difícil é o parto no papel he he he mas sem ser masoquista: gostosa é essa dor de parir um causo, e quando se olha o causo parido, tamanha é a alegria que nem se imagina parar e o próximo já está a caminho. Uma idéia não-parida é um bichinho que fica cavando no côco até encontrar um buraco por onde escapulir para, mais tarde, colocar 'ovinhos' na cabeça do leitor. Assim é um causo bom, não é verdade? E eu gostei por demais deste causo aqui seu, vice?! Amei este causo parido de parto mais que natural. Beijos, até!

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