terça-feira, 10 de dezembro de 2013

A Morte do Sargento



Por Michele Calliari Marchese

O caixão jazia na penumbra. Tinha uma bandeira do Brasil por cima e somente as medalhas no peito do morto brilhavam com as velas tremeluzentes postas por ali. O ar estava parado e o tempo também. Não se ouvia gentes a conversar, como acontece em todos os velórios e tampouco gentes a chegar ou a sair. Quem estava ali, estava.
Ao todo, cinquenta e tantas pessoas submersas em seus próprios pensamentos a olhar para o chão, um ou outro com os braços cruzados no colo e todos em completo silêncio, como se fosse os braços da morte a envolver aquele ambiente pesado, mas ao mesmo tempo livre de qualquer morte. Não existiria mais porque era morto, e não se poderia morrer mais vezes naquele dia como estava propício acontecer.
Não se passou a pinga para os homens beberem e o luto era tão voraz e perturbador que se passaram as vinte e quatro horas do funeral sem comida. Não houve bocejos de dormir nem lamúrias e as lágrimas que caíram eram silenciosas e cristalizadas pelo pesar do passamento do sargento.
Os afazeres do dia a dia foram esquecidos completamente pelos presentes menos para a viúva que tinha as mãos entrelaçadas como se fosse uma coisa só e volta e meia os dedos ficavam brancos pela pressão exercida, então ela soltava um pouco aquela angústia depositada ali para fazer a circulação normalizar em suas mãos calejadas e velhas. Sabia que tinha um mundo de afazeres assim que o caixão baixasse à terra, e lamentaria a perda dentro de sua casa, sozinha. Ali não era necessário.
O calor agradável tornava o cheiro dos cravos de defunto tão acre que os narizes mais sensíveis ficaram entupidos, mas ninguém ousava fungar ou tossir, simplesmente viveram aquele momento como se fosse a própria morte a entrar em seus corpos. Não havia crianças ou jovens durante as exéquias e todos se levantaram somente quando o padre se levantou para o culto final da despedida do sargento.
Ouviu-se um farfalhar de saias e tamancos e em seguida iniciou-se a ladainha com os murmúrios das orações. Nenhuma esperança foi dita, nenhuma cera escorreu das velas e nenhum sopro amainou o cheiro das flores.
A viúva cobriu o rosto do sargento com a bandeira e a tampa se fechou. Como num ensaio generalizado de vida, seis homens dirigiram-se ao caixão e seguraram suas alças como num pacto sobrenatural. Todos vestiam ternos pretos e tinham a mesma estatura, pareciam seis homens iguais, não fossem suas cabeças diferentes voltadas ininterruptamente para o chão.
Não se ouviram suspiros de fim de vida nem piscar de olhos, também não se aperceberam quando as velas apagaram-se uma a uma como se alguém as tivesse soprado.
Saíram lentamente atrás do caixão. Percorreram ruas abafadas e quietas pelo passamento do sargento. Não havia ninguém nas ruas a não ser aquele féretro e as janelas das casas permaneceram fechadas como se não houvesse uma única alma viva dentro delas. Era um silêncio estarrecedor e se ouvia somente o trepidar das pedras quando as pessoas passavam caminhando em direção ao cemitério. Todo o comércio estava fechado. Nenhuma bandeirola tremulou e nenhuma folha caiu das árvores.
As flores estavam fechadas para a morte do sargento, com exceção daqueles cravos de defunto que continuavam exalando seu perfume irritadiço por onde eram levadas. Não se escutava criança alguma chorando ou brincando e tampouco nenhum jovem escreveu uma carta de amor.
Não havia nuvens no céu e o sol resplandecia com vigor para o sargento que começava a cheirar, mesmo dentro de seu ataúde. Aquilo incomodou deveras a viúva que se lembrava de seus afazeres com a pressa da viuvez.
Chegaram ao cemitério na mesma lentidão com que tinham saído da casa do morto e o coveiro aguardava com a pá na mão em frente à cova e tinha os olhos baixos e uma expressão de completo abandono.
Todos se assustaram com as três salvas de tiro, pois que não viram nenhum soldado armado e continuaram não os vendo porque não estavam lá para as honras militares. Alguém abriu a tampa do caixão e outro alguém dobrou a bandeira e entregou-a à viúva que finalmente desatou as mãos para segurá-la num completo alheamento.
O caixão baixou à terra no maior silêncio que alguém pôde presenciar algum dia de sua vida e o coveiro começou a jogar a terra. Alguém trouxe uma cruz com algumas inscrições e quando finalmente terminou o serviço, não havia ninguém ali, somente os cravos de defunto que tinham expirado todo o cheiro que possuíam para a despedida do sargento.





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