terça-feira, 3 de dezembro de 2013

A Transferência do Cemitério


Por Michele Calliari Marchese

Esse causo aconteceu quando o coveiro foi chamado às pressas para o enterro de um jagunço. Ele não gostava muito de enterrar jagunços, mas era a sua profissão e não podia escolher os mortos para as covas que fazia. Procurou uma vaga longe das outras tumbas e começou a cavar.
Já estava encharcado de suor quando a enxada bateu em algo duro. Foi cavoucando mais delicadamente e encontrou uma caixa fechada a cadeado. Olhou para os lados e nem pestanejou quando bateu com força e a tranca abriu-se num estalar sombrio. Removeu a tampa e encontrou tantas moedas de ouro que não foi capaz de raciocinar.
Largou a enxada ao seu lado e com as mãos trêmulas e calejadas pegou uma grande quantidade de moedas. Ria como um louco e enxugava os olhos embaçados pelo suor e pelo mormaço que fazia ali. Iria para casa pegar bolsas e chamar a mulher para carregar a fortuna. Fechou a caixa e tratou de cobri-la com terra para que ninguém aparecesse e levasse o ouro embora.
Correu como nunca tinha feito em sua vida. Quando chegou a casa a mulher tinha saído, mas pegou algumas bolsas e uma mala e voltou para o cemitério também em desabalada correria. Queria chegar antes do féretro do jagunço.
Quando chegou ao buraco, ajoelhou-se para recuperar o fôlego e sentiu uma sede do cão. “Devia ter trazido água”, disse de si para si entre longas respirações. Escutava o coração batendo muito forte e dominou-se para que pudesse carregar todo aquele tesouro enterrado.
Foi quando tentou tirar a terra de onde tinha posto sobre a caixa que não encontrou mais nada. Ficou perplexo e passou as mãos freneticamente sobre o buraco para ver se achava o ouro e não foi capaz de achá-lo. Pegou a enxada e começou a bater loucamente e pensou que provavelmente alguém tinha visto tudo e roubado a caixa do lugar.
Quando o Padre Dimas chegou com o caixão, o delegado se assustou com o tamanho do buraco para enterrar o jagunço e o coveiro respondeu que com jagunço morto não se podia brincar e que quanto mais fundo ele fosse enterrado mais perto do inferno estava e o diabo não precisava caminhar tanto. O Padre se benzeu e tratou de finalizar as exéquias. O coveiro voltou desolado para casa e ainda era capaz de sentir o cheiro daquela caixa cheia de ouro.
O tempo passou e o coveiro teve que fazer um novo buraco para enterrar o nono Bepin cujo corpo ainda estava sendo velado na igreja.
 Enquanto cavoucava lamentou o fato de nunca poder ir aos velórios e a este pensamento a enxada bateu em alguma coisa dura. “Ah, não!” Pensou. Resolveu tirar a terra com as mãos e com assombro constatou que a mesma caixa com o mesmo cadeado — agora aberto — estava ali à sua frente. Não podia acreditar naquilo e uma forte tontura lhe podou o equilíbrio. Desmaiou sob o sol forte.
Quando acordou, deitado na cova, teve dificuldade em abrir os olhos por causa do sol e das sombras das pessoas sobre si.  Um murmúrio lento das mulheres do velório o tirara daquele estupor. Ergueu-se com dificuldade e escutava de algum lugar se ele precisava de ajuda para sair de lá. E também se perguntavam por que o coveiro estava fazendo covas tão profundas se não havia necessidade e o delegado resmungou, naquela sagacidade tão conhecida de todos, que nem era jagunço que iria ser enterrado naquele dia.
O pobre do coveiro não conseguia sair do buraco sem ajuda e foi preciso uma corda para puxar o dito de lá de baixo. Feitas as exéquias e dado água para a viúva e para o coveiro, o Padre perguntou se já não estava na hora dele mudar de profissão, ou que seria o caso de procurar o protético para ver se estava doente.
O coveiro nada disse, mas já tinha tomado a sua resolução: no dia seguinte cavaria todo o terreno do cemitério e acharia o tesouro de qualquer maneira, e levaria o que desse para levar e não descansaria sem ter cumprido aquele propósito.
Só encontraram o corpo do coveiro porque estranharam a movimentação no cemitério. Caixões revirados, esqueletos por toda a parte, buracos imensos em todo o lugar. O delegado teve que juntar uma comitiva para rastrear o acontecido e fizeram um levante para separar os ossos num lugar, enquanto uma turma fechava um buraco, corpos em decomposição mais à frente enquanto outra turma fechava outro buraco. E assim foi até encontrarem o coveiro deitado de barriga para baixo em cima de uma grande caixa de moedas de ouro. Foi uma comoção geral por parte da população da Campina da Cascavel.
Deixaram o coveiro lá naquele último e derradeiro buraco e tiveram que empreender dois dias para conseguir tapar a cova dele. As moedas de ouro foram encaminhadas para as autoridades do Estado e ninguém nunca mais soube delas e por fim, resolveram transferir o cemitério de lugar por que com toda aquela escavação o terreno tinha se aproximado assustadoramente do rio que cortava a cidade.


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2 comentários:

  1. Nossa, coitado do coveiro.
    Campinas de Cascavel é agraciada com belíssimos causos, Michele.
    muito bom.
    Abraços.

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  2. Olá Rodrigo! Agraciada não é bem o termo... acontece tanta barbaridade por aqui que tremo em escrever essas linhas!!!! hahahahha Muitíssimo obrigada pela sua presença constante no Blog e pelo comentário! Abraços

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