quarta-feira, 13 de abril de 2016

Passeio a dois


Por Michele Calliari Marchese

Saíram para passear. Um casal de namorados. Ele querendo dar a mão por pura paixão, ela dando a mão num gesto instintivo, como se fosse natural e parte da vida dar as mãos enquanto passeavam pelas ruas da cidade a olharem vitrines e comentarem as belezas da noite xanxereense.
No passo lento próprio dos casais enamorados, ele pensava em como fazer para pedi-la em casamento. Na rua, na calçada, na pracinha, não, na pracinha não, ultimamente a pracinha estava meio perigosa, nem havia comprado um anel de noivado tampouco tinha as palavras na cabeça e não se decidia se pediria durante o passeio ou depois, quando a deixasse em casa.
A futura noiva pensava em como estava caro aquele vestidinho tão lindo e que tinha certeza lhe cairia tão bem, poderia fazer prestações, mas estava tão apertada com as mensalidades da faculdade lembrando que tinha um trabalho imenso de contabilidade bancária para o próximo dia quinze, gravando na memória que assim que chegasse a casa ligaria para a amiga para verificar se ela havia feito alguma coisa, pois não tinha nem começado a sua parte; no dia vinte venceria a mensalidade e não poderia comprar aquele vestido mais lindo do mundo nem por reza braba. Suspirou com resignação.
O namorado percebeu aquele suspiro e analisou friamente ser um fastio daquele silêncio dos passeios noturnos, quebrados somente por algum acelerar inclemente de alguma moto poderosa que devia estar a quilômetros de distância dos dois e obviamente seu condutor pouco se dava se estava incomodando o passeio silencioso do casal de namorados. Ele pensou que nunca poderia ter uma moto daquelas e mesmo que tivesse, jamais sairia acelerando por aí daquele jeito que o motoqueiro acelerava, se fosse um pouco melhor em matemática poderia calcular o tempo da aceleração e quantos metros aquela moto havia percorrido, que cor tinha? Gostava das pretas reluzentes e lembrou-se do anel de noivado, colocou a mão no bolso e contou sem ver uns míseros vinte cinco reais que dava para tomarem um sorvete por aí. 
“Nossa, que sapato mais lindo”, exclamou a mulher em voz alta mesmo, já que o sapato era deveras alucinante e mulher que é mulher não dispensa uns bons pares de sapatos sem nunca usá-los, mas a mensalidade não deixava, e combinava com aquele vestido que ela havia visto na outra vitrine e que havia suspirado de resignação e tinha que suspirar o dobro porque tinha na cabeça que a prestação do sapato era maior que a do vestido, mas botaria um “olho gordo” para que sobrevivesse até a próxima liquidação. Aí era possível compra-lo; olhou para o namorado que remexia nos bolsos e pensou no que aquele silente caminhante estava pensando e mexendo tanto; era possível não ter trazido uns trocadinhos para um sorvete?
Aquilo a incomodou e incomodou a ambos, o remexer nos bolsos para procurar mais dinheiro para o anel de noivado era uma tarefa insalubre e ela esqueceu a vitrine de sapatos para olhar aquela mão passeando freneticamente de um bolso a outro da calça do rapaz, depois que passou para o bolso da camisa ela perguntou à queima roupa: “Está fazendo o que?” Muito envergonhado em pensar que ela descobrira sobre a falta de dinheiro para o anel de noivado; “como ela soube?” e pensou naquele amigo confidente que provavelmente deve ter contado à namorada seus mais ocultos anseios. Chegaria do passeio e ligaria para ele; com que motivo havia contado? Para que? Agora estava ali, catando dinheiro invisível nos bolsos inexistentes de toda a sua roupa, se pudesse falava de uma vez, já que ela sabia.
Diante da mudez e do rubor nas faces do namorado, não insistiu, porém um pensamento longínquo veio chegando, chegando de mansinho e ela se fez a pergunta mais normal que uma pessoa normal pode fazer a si mesmo: “Será que ele é psicopata?”, afinal havia lido alguns livros sobre isso e detectou com muita maestria alguns psicopatas sociais que faziam parte de seu círculo de amizades e tentou lembrar-se de um caso, parecidíssimo com o que estava presenciando ali ao lado do namorado e estalou os lábios, arregalou os olhos e disse largando a mão da mão dele: “Você está me assustando”.
Quem se assustou deveras com a frase foi ele que não entendeu nada e estendeu as mãos, uma delas com os vinte e cinco reais e a outra com trinta e oito centavos em moedas para tomarem um sorvete. Ficou pálido e pensou se realmente tinha vontade de tomar sorvete mesmo, já que ela havia estragado noite tão aprazível e aquele amigo da onça que tinha delatado para ela todo o fulgor do seu amor. Ela disse que sim, mais por medo do que por outra coisa, e tentava a todo custo lembrar em que página estava aquele clássico caso de psicopatia naquele livro cujo nome esquecera nas brumas do susto.
Sobrou dinheiro do sorvete, mas não sobrou muita lucidez naquela mulher assustada e depois de um longo silêncio pediu-lhe que a levasse para casa ou se fosse incomodar, que deixasse, pegaria um taxi mesmo, que não se preocupasse, pois havia lembrado o trabalho de contabilidade bancária que era para amanhã e não tinha feito nada, precisava ir sem mais demora. Adeus.
Ele ficou sentado no banquinho em frente à sorveteria. Decerto que era melhor assim: conhecer antes de casar, coisas que seus pais sempre lhe disseram e agora ele percebia quanta verdade havia naquelas sábias palavras. Ela não queria casar e pronto; mesmo sabendo antecipadamente disso, teve atitudes de mulher louca e seria pior depois que casassem, pensou.
Pediu mais um sorvete já que tinha dinheiro e riu pensando naquela moto preta reluzente. 

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Um comentário:

  1. Perfeita descrição dos desencontros amorosos e do risco de se tentar adivinhar os pensamentos alheios! Escrita leve, envolvente, que nos leva a ler com encantamento. Parabéns, Michele!

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