quarta-feira, 4 de maio de 2016

O susto do dia 16


Por Michele Calliari Marchese

Aconteceu que esse dia foi marcado em todas as folhinhas penduradas atrás das portas para que nunca fosse esquecido, tanto pelo pavor quanto pela novidade climática. Passariam anos até que um novo alvoroço natural daquela estirpe desse as caras pela Campina da Cascavel novamente. 
Era verão e o dia estava especialmente quente, propício para secar as roupas no varal sem que alguma chuva ocasional –como vinha acontecendo diariamente naquelas semanas– molhasse novamente as vestes e tamancos. Deram banhos até nos bichos para aproveitar aquele dia excepcional, inclusive frei Leonardo pôde finalmente lavar suas batinas de rezar a missa e estava só de ceroulas em seu quarto preparando o sermão daquela noite. Abanava-se com um livro quando um dos ventos atravessados que assolam a nossa cidade adentrou com força no nariz do frei. 
Obviamente ele não entendeu a mensagem daquele vento fora de hora e vindo do lado errado e benzeu firmemente o alívio para o suor que o fazia perder o lápis escorregando por seus dedos molhados. Por conta desse empecilho, resolveu que o sermão daquela noite seria sobre Sodoma e Gomorra. Propício. Ainda mais que o sacripanta do Coronel Luis estaria na primeira fila rezando falsamente e essa passagem bíblica bem poderia atenuar suas atitudes malvadas e injustas.
Na parte onde dizia sobre as imoralidades acometidas pelos habitantes daquelas cidades, o frei resolveu estender-se mais e mais e mencionou atrocidades conhecidas pelo povo da Campina e praticadas pelo Coronel Luis. 
O sermão ficou comprido, mas decerto que valeria a pena. 
Pegou uma toalha para cobrir-se e foi tirar suas batinas do varal, teria que passar a ferro, porém lembrou que não havia acendido o fogão a lenha e, por conseguinte não teriam brasas para esquentar o ferro. Paciência. As vestiria amassadas mesmo.
Às oito horas, como de costume, o povo foi à missa e na primeira fila sentado muito ereto e de cabeça baixa, estava o famigerado Coronel Luis, aquele que nem o diabo quis para si, com as mãos cruzadas no colo, muito bem vestido e de brilhantina no cabelo. Quem não o conhecia tinha a impressão de ver um homem muito crente, muito bom, um verdadeiro beato que se ajoelhava mais que o normal e tinha os olhos fechados na oração e isso fez com que o frei Leonardo questionasse os muitos vieses da fé e esquecesse temporariamente o que fazia ali em frente àquele desprezível que lei nenhuma conseguira colocar na cadeia. 
O frei disse o sermão com uma ponta de ódio e enquanto falava das iniquidades dos habitantes de Sodoma e Gomorra olhava firmemente para o Coronel Luis e tinha a vontade de excomunga-lo naquele momento e exaltou-se no sermão pondo medo e pavor em toda a população. Menos no Coronel.
Aconteceu que quando terminou a missa as gentes que estavam lá escutaram um estrondoso trovão e apressaram-se na saída para não pegarem chuva na volta para casa, porém o que viram os deixou boquiabertos e apavorados diante daquele espetáculo nunca dantes visto no céu da Campina da Cascavel.
Entre as densas nuvens espocavam raios e a noite virou dia e todos se lembraram do sermão do frei e imaginaram em suas mentes que aquilo que se desdobrava no horizonte e no céu era a própria ira do Supremo. 
O rangido dos troncos das árvores era avassalador e ninguém mais colocou o pé para fora da igreja e amontoaram-se numa grande união, deixando de lado aquele Coronel dos diabos que provavelmente era ele o causador daquela desgraça iminente. Morreriam decerto ou virariam estátuas de sal, de qualquer modo não tinha como não olhar para aquela imensidão de raios que caíam sem dó nem piedade em cima das casas, estradas, e notaram que os cavalos estavam deitados a protegerem-se e não se escutava outra coisa a não ser o barulho medonho vindo do firmamento e o zum zum zum das orações dentro da igreja.
A senhora esposa do Coronel Luis começou a chorar, e nunca se soube se era por causa da intempérie ou se por carregar o imenso fardo que era a aliança de casamento. Diante daqueles soluços desgraçados, as outras mulheres se condoeram da pobre mulher e passaram a chorar também e o frei, arrependido de seu sermão, pois que nunca em sua vida imaginaria que suas palavras pudessem provocar tamanho desespero por parte daquela população tão pacata, sentou no chão do altar, bem em frente ao Coronel, que já tinha começado a ordenar isso e aquilo e ninguém sabia se devia obedecer ou não e olhavam atônitos para o frei, esperando algum soluço ou quem sabe um aceno de mão.
O frei empertigou-se e teve que gritar, pois que a barulheira dos raios e trovões era infernal e quase não se podiam concatenar as ideias e era tanto choro e ranger de dentes que ele deu um soco na mesa e pediu que se acalmassem. O povo se assustou e sentaram-se imediatamente, esperando as ordens do frei; para pegarem seus terços intermináveis e rezarem que logo tudo isso passaria, pois que o bem prevalecia sempre e o mal seria rechaçado sem mais demora, eram coisas da natureza, dizia.
Uma hora se passou naquela angústia, mas logo em seguida veio a tormenta e os raios amainaram e a noite reinou definitivamente na Campina da Cascavel.
Muitas crianças dormiam nos colos de suas mães, serenas. A calmaria daquela noite imprestável veio sem mais demora e o primeiro a sair da igreja foi o Coronel Luis, sendo seguido de perto por sua esposa chorosa e pelos filhos cabisbaixos. 
Frei Leonardo na sua ansiedade de jovem apenas desejou que aquele sacripanta percebesse que as palavras daquela noite e todo aquele magnífico espetáculo da natureza amolecesse as atitudes desvairadas e descabidas que vinham prejudicando a harmonia de nossa linda cidade. Mas uma ponta de dúvida grudou em seu coração. Porém o consolo de que nada dura permanentemente o fez dormir aliviado. Recebeu muitos tapinhas nas costas em sinal de agradecimento e de coragem. Tinha o bem ao seu lado.

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