quarta-feira, 11 de maio de 2016

Sobre velas e esperanças


Por Michele Calliari Marchese

Talvez os cemitérios, longe de somente guardar os mortos guardam também as inesgotáveis angústias dos vivos, o cheiro das velas acesas e o riscar inclemente das ceras caindo incólumes em todos os tipos de chãos, terra, cimento, azulejos, gramas e lágrimas e o vento faz as árvores gemerem no lamento profundo da solidão.
De solidão se fazem os incansáveis corredores que levam de jazigo a jazigo, de jazigo a jazigo trazendo a dor e a desesperança nas fotos estampadas, muitos altaneiros, outros em preto e branco, carcomidas que são pela ação inexorável do tempo; números presos somente por pequenos parafusos que refletem a luz do sol da vida. Um paradoxo. Uma contradição.
Era nisso que pensava quando finalmente cruzou o portão do cemitério. Tinha ido colocar flores no túmulo da vizinha que havia lhe ajudado tanto com os filhos. E agora havia partido, para cair no esquecimento daqui a alguns anos, ou décadas talvez, mas haverá um tempo que ninguém mais se lembrará daquela mulher, do que morreu o que fez e talvez não haja mais herdeiros –pois na corrida muitas vezes lamentável do espaço– que chorem por ela e aquela foto não passe somente de uma foto e suas inscrições apagarão para todo o sempre. Como tudo na vida.
Lá fora o sol brilhava mais forte e pareceu que se transportava automaticamente para outro mundo: o dos vivos com o crepitar dos trabalhos aqui e acolá, ônibus apressados levando gentes mais apressadas ainda e a tinta dos paralelepípedos que se desgastam pouco a pouco, de chuva em chuva, como nós.
Passou em frente a uma casa amarela, com janelas marrons, muito cuidadas, um extenso jardim de rosas que se desdobravam à medida que seus passos iam avançando pela calçada e as pessoas que tomavam o chimarrão e falavam de outras pessoas no julgamento pertinente de todo ser humano.
A sacola que carregava, pois não queria carregar as velas na mão, agora pesava em seu braço, porque as velas não foram acesas no túmulo daquela vizinha, não achou jeito de fazer isso, mesmo tendo no pensamento que além das flores –uns crisântemos brancos dentro de um vaso– acenderia as velas e rezaria e também passaria um bom tempo por lá a lhe fazer companhia na solidão dos corredores do cemitério. A sacola que carregava pesou em seu braço, roçando-lhe as costas, fisgando seu rim. E não foi capaz de ficar cinco minutos em frente ao esquife da vizinha.
Ela encontrou adolescentes aos beijos cabulando alguma aula. Um ônibus passou levantando a poeira daqueles dias secos e lembrou-se de quanta coisa tinha que fazer em casa, varrer as calçadas, limpar os armários, espanar o pó, secar a roupa, encontrar o marido aposentado sentado numa cadeira de palha vendo o tempo passar e o mato crescer por entre o cimento da garagem.
O trinado de um passarinho que ela esquecera o nome aliviou o pensamento sombrio que estava tendo naquela manhã, fora os beijos apaixonados e agora esse trinado em hora tão propícia, andava pensando bobagens, que tudo sobrava para ela fazer e sorte os filhos terem crescido e pensando melhor, sorte não ser um deles aos beijos na outra esquina, não saberia o que faria e a sacola pesou mais um pouco em seu braço, pedindo arrego, uma troca de braço e foi o que ela fez. 
Faltava duas quadras para chegar em casa e mais uma vez um ônibus passou pela rua levantando migalhas de outras vidas e pensou em quanta gente havia passado por ali com as mesmas passadas que dava ou nas pessoas que tinham aberto aquela rua há muito tempo atrás, um retrocesso de memória invadiu sua mente e invocou recordações minúsculas de um tempo que nem sabia precisar se existira ou não, um vazio sem precedentes: e aqueles que se foram? Um dia iria também, mas a essa ideia arregalou os olhos, estremeceu e disse de si para si, falando alto mesmo para que alguém, mesmo que fosse ela mesma, escutasse que ainda não estava preparada, que não podia partir, queria ver tantas coisas, talvez um filho formado, ou um neto. Não se achava velha, mas vendo o marido da esquina, sentado onde achava que ele estaria sentado, imerso em pensamentos vazios, por que não acendera as velas no túmulo da vizinha?
Faltava pouco para chegar e resolveu comprar pães no mercadinho ao lado de sua casa. Tinham saído do forno. Cheiravam a infância, cheiravam a calor humano e pegou uma pontinha para saciar a fome de vida que tinha ao entrar naquele cemitério de outrora, quando tinha ido mesmo? Mastigava enquanto pensava no marido e nas velas que incomodavam sobremaneira; um peso incomum, uma inverdade que não foi capaz de levar adiante, não foi capaz de acender as velas em seu túmulo de amiga, não foi capaz de cumprimentar o marido sentado naquela cadeira de palha, onde acharia que estaria e de fato estava, o que fazia aquele inócuo?
Pendia para o lado, quase caindo, dormindo talvez, muito sol na cabeça dá nisso e como está quieto. Cutucou lhe o braço para acordar, porém não acordou, caiu no chão como caem os pássaros abatidos e sem defesas, esperando por ela talvez. Caíram os pães e todo o frescor infantil, caíram as vidas, dele e a sua por não ter derrubado a sacola com as velas não acendidas no cemitério. Caiu a noite em plena manhã de sol. Seria preciso acender as velas agora, sem mais tardar.

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