quarta-feira, 1 de junho de 2016

Imersão


Por Helena Frenzel


"O feijão vai ficar sem gosto, já te falei pra usa Knorr e abóbora, nada de beringela no cozido; e beringela é com "gê" e também com "jota", já te disse não sei quantas vezes e pra isso tem corretor". 

"Como?!"

"Vê lá se não chega tarde que o filme começa às cinco e depois das oito é correr pra casa e pôr os meninos na cama. É, eles vão ficar brincando até caírem de cansaço, todo dia é o mesmo... "

"Fato!" 

E o problema é a prova dos trinta minutos que ela tem para escrever o texto perfeito numa língua que não é a dela, mais uma entre tantas que nunca foi nem nunca será e ela nem quer que seja ou queria que fosse, nem mesmo nunca sonhou, apenas deseja entender e falar melhor, mais claro. 

"É que tudo cai nas costas da gente não porque seja mãe mas porque a gente é besta", disse a vizinha do duzentos e três (se seria duzentos e quatro ela não sabe nem lembra) porque ser besta é algo maior que ser homem ou mulher, porque besta é animal dócil, nem mesmo se rebela à fina corda que a prende ao lugar de pastar: o pasto.

"Comida é pasto, bebida é água. Você tem sede de quê? Você tem fome de quê?" ela é uma titã desvairada, ela quer diversão, família e arte, quer ser ela mesma e quer ter tudo em qualquer parte, vestir-se (ou não) como quiser, e tem feito isso porque ela é forte pra dedéu, é pura humana, sobretudo gosta de estudar e às vezes exagera: soprattutto sobre, que não é sotto

Pensando na prova e também no exame pega o texto e começa a ler, estuda nas pausas e o tempo é sempre ótimo: não falta nem resta, ops que restar não é sobrar na língua dela: ela quer dizer exato, o tempo é exato e os trinta minutos... implacáveis! E ela acha é pouco. 

"Que não pense nisso", repete pra si na frente do espelho (do quarto, do banheiro, do retrovisor) "e esse trânsito que emperra"... Não reclama para que não piore e diz que prefere andar de ônibus pois ao menos poderia ler, e desliga rádio e pensamentos para não perder a atenção nos carros que correm em sentido contrário enquanto ela rasteja... Inveja deu! 

Porque o Po porque o Reno porque o Rhein... porque o Nilo e o Amazonas imenso... Imersa nas palavras da RAE e do TRECCANI, tre cani, três cães (lógico que não seria isso, mas ela gosta de brincar com sons) e três dias, trinta e três, e o exame no dia... vinte e três! E ainda tem que ir ao banheiro, como se não bastasse mais... e aperta mais um pouco, segura até não poder mais, que cinco minutos, que... quê... ai... e finalmente e ai e logo passa e já passou e "tua camisa passa tu mesmo com as tuas mãos" porque tudo cai nas costas da gente mas porque se é besta, não porque se é mãe e mulher que trabalha e estuda e vive e corre e luta e sempre busca o melhor. 

Depois das nove, meninos na cama, ela pega a gramática e vai estudar, gramática cara que ela comprou se dizendo "completa" e só dizer que uma língua é completa deixa lacunas por preencher e ela pensa em Iser (ou teria sido Jauß? ela gosta destes nomes e das idéias destes dois) e idéia não tem mais acento na nova ortografia do português, mas ela insiste no "erro", insiste na acentuação, insiste na leitura do texto e nelle parole che mancano (a lui o a lei? A loro! Ela não sabe o que tinha de saber...) 

Abre a gramática e estuda: está estudando quelle parole que tudo juntam mesmo na separação, quelle parole que subordinam ou coordenam, quelle parole que... mancano, quelle parole que... pero speri: como assim que "anzi" não aparece no índice final do livro e sim "así"

E folheia a gramática e não acredita no que lê: as últimas páginas estão todas em espanhol! Como?! Não era uma gramática de italiano? 

E pensa no caro que pagou por todas as suas gramáticas e antes de pensar mais nada pensa que teria que reclamar e escrever um email para a editora, em alemão, falando do erro e exigindo o dinheiro de volta e que "como deixaram passar um tremendo erro desses e ninguém reclamou?" e... 

Speri, stanca stai... cansada, fecha a gramática e volta para a página inicial: espanhol, em alemão; italiano e espanhol com capas vermelhas, ambas em alemão, claríssimo, e tudo por conta da conjunção e da capa, e fica claro e ela sorri de si mesma e recorda de Distraído, conto escrito uma vez, imersa em García Márquez. 

"E foram felizes e comeram perdizes". 

Ela apaga a luz e salda o amanhecer com o novo conto que acabou de engendrar para distrair-se e não pensar na prova, sobretudo para não pensar.



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