quarta-feira, 13 de julho de 2016

O novo delegado


Por Michele Calliari Marchese

O Jurandir ficou assustado quando recebeu uma carta, nunca tinha recebido cartas, de modo que o susto não foi infundado. A missiva vinha da capital, cheia de selos e seu nome escrito à máquina o fez cheirar o envelope. Demorou pelo menos uma hora até que a sua mulher tomou a carta de suas mãos e abriu com um rasgo impiedoso, fazendo saltar de dentro um documento coberto de assinaturas e carimbos; tratava-se da nomeação dele como Delegado da Campina da Cascavel e no verso daquela folha havia as indicações e os feitos dele como cidadão exemplar.
Fez a mulher ler inúmeras vezes, pois não acreditava no que ouvia, e procurava o seu nome no envelope e tantas vezes fez isso que fatigou de tal forma que teve que deitar no sofá, sendo assistido pelos vizinhos que já sabiam de tudo, dada a gritaria da esposa na janela, dizendo o que havia acontecido.
Muitos parabéns, apertos de mãos, beijos das mocinhas mais atrevidas e a visita incólume do Padre Dimas, acompanhado do Frei Leonardo – aquele que veio em substituição a este – que abraçou o Jurandir num agradecimento eterno pelo salvamento de sua vida. Nunca iria esquecer. E pediu que lesse aquela outra página onde havia assinado a próprio punho seu nome como pároco oficial da Campina da Cascavel e encontrou também a assinatura do Júnior, seu companheiro corajoso naquela madrugada de desespero.
Chorou reconfortado pelos companheiros e ofereceu chá e bolachas de manteiga que a esposa tinha recém tirado do forno. Os convivas ficaram na casa do Jurandir muito tempo depois. A conversa girava em torno do abandono em que se encontrava nossa linda cidade e a chegada do Frei Leonardo, jovem ainda e com disposição suficiente para as lidas sagradas.
O Jurandir, já refeito da surpresa, pegou um papel e foi anotando todas as ideias que tinha com relação à cidade e de como iria – junto com a população – empreender a segurança geral e psicológica daquela gente tão acolhedora e pacata. Comprovou que por uma sorte enviesada, naquele período que não teve delegado na cidade, nenhum jagunço apareceu, nenhuma tocaia fora feita e a única desgraça que ocorreu havia sido por causa daquele falso messias que sequestrara o Padre Dimas, sem sucesso é claro, por conta da coragem dele e do Júnior. Jurou descobrir o assassino do antigo delegado, e mesmo após a sua morte, muitas décadas depois, esse mistério nunca foi solucionado.
Olhou com enlevo para o Júnior e este ficou meio sem jeito, porque não entendia aquele olhar de piedade para com a sua pessoa e tampouco sabia o que se passava na cabeça do Jurandir.
Todos fizeram colocações a respeito da segurança e o Jurandir cansou a mão de tanto escrever, tendo como primeira atitude enviar o falso padre que estava preso na despensa da delegacia para o presídio de Curitiba e chamou o filho mais velho para que continuasse com o projeto, porém, com a letra praticamente ilegível, não foi possível ao novo delegado lembrar-se – mais tarde – do que estava escrito a partir do número cento e dezesseis.
O delegado Jurandir não via a hora de chegar à delegacia; faria arranjos, limpezas, empunharia as armas do antigo delegado com orgulho e determinação e contaria com a ajuda dos muitos amigos seus e dos defensores da lei. 
Sabia em seu íntimo que teria desafetos, como os teve o antigo delegado, mas enfrentaria com a energia moral necessária para a sobrevivência e a esse pensamento lhe doeu a bexiga e uma vontade doentia de urinar lhe fez soltar um gemido, impróprio para a pessoa do delegado – como ele pensara naquele momento de dor – mas impossível de ser contido.
Naquela época já tinha um médico na cidade e ele veio às pressas, trazido pelo vizinho do Jurandir, que achou que o homem morreria sem mesmo ter ocupado por um dia a cadeira da delegacia. O médico tratou Jurandir com as beberagens comuns naquela época e a doença urinária foi contida e em momentos de paz e harmonia social nunca incomodou, porém jamais foi curada em sua plenitude e isso o delegado Jurandir somente descobriria quando acontecesse alguma coisa insólita na Campina da Cascavel.

E então, a partir de 1939, o delegado Jurandir, Frei Leonardo e o Júnior – o filho do tabelião – juraram em praça pública, perante uma multidão, “que estariam ali para assegurar o povo e trazer tranquilidade às casas de família, aos sozinhos e abandonados e a todos os que fizeram dessa nossa terra, seu chão permanente de vida, crescimento e amor.” Trecho do discurso de posse do delegado Jurandir naquele dia primaveril. 


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