quarta-feira, 21 de setembro de 2016

A bordadeira, a blogueira e a pensante


Por Michele Calliari Marchese

Estavam as três sentadas em suas respectivas cadeiras, abanando o rosto com o que tinham em mãos. O calor sufocante daquele sábado primaveril não dava tréguas aos rímeis e lápis que teimavam em escorrer dos cílios caindo inesperadamente sobre a bolsa dos olhos formando um cânion de olheiras. Profundas, cansadas, não só pelo pretume da maquiagem borrada, mas próprio daquele sábado escaldante.
A Silvia bordava sua interminável tela. Fazia quase um ano que bordava aquele pedaço do tapete, sempre com a mesma cor, uma cor sem cor, desbotada, pálida; para que as outras cores realçassem inesperadamente fazendo com que as pessoas pensassem duas vezes antes de limparem seus pés naquela preciosidade que lhe tomara dezoito meses. Dezoito meses! Era muito tempo bordando um reles tapetinho que não media mais que meio metro. Pensou nele colocado na porta, lindo de morrer e nos pés sempre sujos dos filhos que entravam e saíam correndo e de quantas vezes teria que lavá-lo durante a semana e foi capaz de soltar a agulha, deixando-a cair pelo bordado, suspensa somente pela linha que já pontuava um ponto incompleto. Olhou para os pés daquela pensante, sentada à sua direita, de cabeça baixa, pensando e pensando e não dizia uma palavra nem que fosse um suspiro para mostrar que estava ali, junto com as outras duas. “Pelo menos os pés me parecem limpos”, daria com gosto o tapete para que ela pisasse, mas somente depois que tirasse os tênis e dependendo do estado das meias, essas também.
A Teresa seguia teclando em seu teclado de mil caracteres, sempre buscando um novo, alguma coisa com o que distrair os visitantes de sua página virtual, uma página nada a ver, pensava ela naquele instante; “porque diabos fui fazer essa porcaria de página, agora estou presa aqui”, e estava presa na diversidade irreal que montava e apagava sem parar, limpando de quando em vez as gotas de suor que brotavam em sua testa, desejando bordar ao invés de teclar, porém notou que as linhas eram de lã e desejou pensar como aquela pensante sentada na cadeira à sua direita que nem suspirava como era de se esperar naquele calor e mantinha a cabeça baixa por quê? Nem queria saber, provavelmente somente pensava e pensava e olhou a bordadeira com a mão no queixo a olhar para a pensante com a linha dependurada no bordado como que largando tudo numa estafa inconsciente, “é uma louca bordar nesse calor”, mas notou que nenhuma das duas suava como ela e talvez nem sentissem tudo o que sentia e poderia ser a menopausa e pensou na quantidade de absorventes que comprara numa promoção, “teria que dar para alguém que ainda precisasse”; sentiu certo alívio pela proximidade de não sentir mais cólicas, colocou a mão na barriga que tinha parido três filhos e olhando para aquela pensante que não tinha filhos e estava no furor da juventude ali parada “sem respirar, me parece” notou que ela cruzou os pés “estava viva, graças a Deus!” 
A bordadeira notou que o “tec tec tec” da digitação havia parado e aquilo tirou-a do torpor que sentira ao auscultar minuciosamente a pensante, cruzara os pés, então estava viva “graças a Deus” se tivesse morrido ali sentada o que aconteceria depois? Decerto teriam que chamar muitas pessoas e levantou-se para pegar o celular e verificar se tinha todos os números possíveis, de polícia a SAMU, de bombeiros a médicos, fariam o que depois? Chamariam os parentes e pensou que a maioria deles residia em outra cidade, “mas o que faz essa moça aqui, longe dos parentes?” Não se deteve por muito tempo nessas elucubrações, havia um bordado a terminar e não havia tempo até o próximo inverno, porque os invernos merecem tapetes de lã para que a casa se torne mais quente com a presença daquele mimo no chão. Não fossem os pés sujos dos filhos faria mais uma dúzia e encheria a casa com tapetes de todas as cores e teria que mandar o gato para outra freguesia, porém seus filhos chorariam noite e dia, dia e noite. Não era possível tal feito. Com gato e sem tapetes. Desistiu de bordar pelo resto do dia. Passaria aquelas poucas horas ouvindo o folguedo das crianças a brincar no pátio e deu de cara com a pensante que olhava com vivo interesse o guardar do bordado numa sacola cor de rosa.

A blogueira notou a outra guardando lãs e agulhas e dobrando aquela tela sem cor numa bolsa cor de rosa, no que ela pensava em guardar um bordado tão atrasado quanto aquele dentro de uma sacola horrorosa daquelas, e escreveu isso em seu blog para advertir consumidoras a respeito de produtos duvidosos e com destino certo. O lixo. Escreveu, escreveu e escreveu por mais duas horas ouvindo o suspirar da Silvia e o não existir da pensante, aquela que sentava à sua direita e que tinha certeza de que agora sim estava morta. Salvou seu trabalho sem conferir uma vírgula e acessou os números de emergência em seu i-phone. Trouxe lenços umedecidos para limpar a maquiagem borrada da bordadeira e convidou-a para chupar um picolé e foi quando as duas, blogueira e bordadeira deram-se conta de tudo quando ouviram a voz mais rouca e sem uso do mundo dizendo que também queria um picolé, “mas eu quero um picolé de chocolate”.


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