Por Michele Calliari Marchese
E essa frase apareceu na última de milhares de cartas de amor que
perduraram por trinta e cinco anos a fio, numa tentativa vã e louca de manter
aquele amor acabado pela gastura num amor visionário e cheio de futuro tão
desgraçado quanto a caneta que as escreveu, cuja tinta não esmaeceu jamais.
Nunca deixou aquele amor morrer mesmo estando morta para o amor há
tempos; nunca deixou de dizer “eu te amo” mesmo que as palavras ditas com um
sorriso nos lábios não refletissem o que lhe ia ao íntimo e talvez nunca o
tenha amado ou quando foi que o amou verdadeiramente, aquele amor de entregas e
sentimentos que se sente quando um filho nasce; talvez porque sejam diferentes,
talvez porque só se conhece o amor depois de parir um filho e a esse pensamento
pensou em riscar a última frase quando diria finalmente que passaria a primeira
noite sem o calor daquele corpo de trinta e cinco anos de casamento e de muitos
obstáculos, choros, e decerto que isso se chama amor.
Releu diversas vezes e notou que escrevera “meu amor” na primeira linha
e na sequencia havia um rol de despedidas que jamais pensara em dizer,
engolindo com sofreguidão os acenos finais de um ajuntamento de almas e olhou
para aquela caneta velha de metal carcomida pelos suores de sua mão ao escrever
tantas cartas, bilhetes e convites sem jamais perder o viço do seu objetivo:
escrever. Quanta tinta havia dentro? Anos e anos que se passaram e nunca pôde
jogá-la fora por falta da tinta insistente e pensou que talvez não escrevesse
tanto assim e poderia ter escrito mais e uma saudade dele –mesmo ele estando
na sala a trocar canais da televisão com seu controle remoto também carcomido
com o suor de sua mão– tornou-se insuportável.
Foi até ele com a carta dobrada numa das mãos e beijou-lhe a testa
fazendo com que ele a olhasse surpreso e assustado, pois que somente olhava
para a televisão e pensava em outras coisas, em outros acontecimentos, em quando
ainda precisava trabalhar ou que estivesse esperando o vizinho chamá-lo para um
carteado. Olhou profundamente tudo aquilo, aquela situação e lembrou-se do que
escrevera naquela tarde que o casamento havia sido um erro e será que havia
sido mesmo? Sem ele não teria tido os filhos ou teria com outro, e que vida
levaria com outro que não fosse aquele do controle remoto sentado em frente à
televisão, agora olhando para ela sem entender o porquê do beijo na testa e sem
perguntar nada, como sempre fazia.
Olhou para o papel em sua mão e voltou para a mesa para riscar aquele
“em vão”, porque não foi em vão. Agora depois dos cinquenta não era possível
estar pensando naquelas bobagens que escrevera em despedida e releu
miseravelmente linha por linha, palavra por palavra, que, sem um erro sequer de
gramática ia tecendo um longo fio de desilusão como tinha sido o seu
casamento e pensou que talvez fossem os hormônios a lhe perturbar a existência
e imaginou-se novamente na cama sem ele.
“A primeira noite sem você” escrita no último parágrafo daquela carta
talvez absurda do sentimento de despir-se, de livrar-se, de largar tudo foi o
que a fez parar de escrever de supetão, pois vinha fazendo as despedidas
imaginárias numa loucura desenfreada até aquela simples frase aparecer escrita,
viva, latente e pujante em frente aos seus olhos. Dobrou a carta.
Não queria mais ver aquela frase. Dobrou novamente e guardou no bolso do
casaco. Pegou a caneta e olhou para o marido; recordou minuciosamente o dia do
seu casamento e do quanto estava feliz, do quanto estava realizada ao entrar de
mãos dadas na casa com ele. Sentia as mãos fortes a lhe apertarem as suas e o
cheiro das rosas miúdas de seu buquê abraçou aquele momento como um despertar
para o futuro. Fora ele a desabotoar os inúmeros botões de madrepérola que lhe
fechavam o vestido nas costas e dizia Para que tanto botão e por que tão
pequenos? E ela ria-se da dificuldade daquele que estava ali em sua frente com
a televisão desligada e calçando os chinelos numa atitude de prostração perante
a vida, teria ele também essas lembranças? Saía de sua respiração uma ofegante
vivacidade e vinha em sua direção, mas não tinha mais os botões a serem abertos
e tampouco sabia o que ele queria.
Pois ele veio dar-lhe um beijo em sua testa. Talvez em agradecimento
àquele de outrora, aquele do arrependimento daquela frase da primeira noite sem
você ter sido escrita tão levianamente e o pensamento de ele descobrir a carta
em seu bolso, porque já então a beijava em sua boca e pegava em suas mãos,
aquelas mesmas mãos quentes e fortes e toda a despedida alucinada daquelas
linhas loucas e vãs desmereceram todo o crédito possível do amor cansado.
Uma das mãos segurava a carta com medo e insegurança e a outra
acarinhava o pescoço do marido que a fez levantar-se para um abraço demorado e
sem receios, aquele abraço ingênuo por não saber da carta e dos pensamentos da
mulher, aquele abraço de trinta e cinco anos a fio, cujas palavras não
precisariam ser ditas porque não precisaria nunca de palavras e aquelas
despedidas imaginárias foram sendo esmagadas, esfoladas como faz o tempo com
relação às coisas vãs.
A primeira noite sem você despertou à vida.
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