quarta-feira, 1 de março de 2017

A primeira noite sem você


Por Michele Calliari Marchese

E essa frase apareceu na última de milhares de cartas de amor que perduraram por trinta e cinco anos a fio, numa tentativa vã e louca de manter aquele amor acabado pela gastura num amor visionário e cheio de futuro tão desgraçado quanto a caneta que as escreveu, cuja tinta não esmaeceu jamais.

Nunca deixou aquele amor morrer mesmo estando morta para o amor há tempos; nunca deixou de dizer “eu te amo” mesmo que as palavras ditas com um sorriso nos lábios não refletissem o que lhe ia ao íntimo e talvez nunca o tenha amado ou quando foi que o amou verdadeiramente, aquele amor de entregas e sentimentos que se sente quando um filho nasce; talvez porque sejam diferentes, talvez porque só se conhece o amor depois de parir um filho e a esse pensamento pensou em riscar a última frase quando diria finalmente que passaria a primeira noite sem o calor daquele corpo de trinta e cinco anos de casamento e de muitos obstáculos, choros, e decerto que isso se chama amor.

Releu diversas vezes e notou que escrevera “meu amor” na primeira linha e na sequencia havia um rol de despedidas que jamais pensara em dizer, engolindo com sofreguidão os acenos finais de um ajuntamento de almas e olhou para aquela caneta velha de metal carcomida pelos suores de sua mão ao escrever tantas cartas, bilhetes e convites sem jamais perder o viço do seu objetivo: escrever. Quanta tinta havia dentro? Anos e anos que se passaram e nunca pôde jogá-la fora por falta da tinta insistente e pensou que talvez não escrevesse tanto assim e poderia ter escrito mais e uma saudade dele –mesmo ele estando na sala a trocar canais da televisão com seu controle remoto também carcomido com o suor de sua mão– tornou-se insuportável.

Foi até ele com a carta dobrada numa das mãos e beijou-lhe a testa fazendo com que ele a olhasse surpreso e assustado, pois que somente olhava para a televisão e pensava em outras coisas, em outros acontecimentos, em quando ainda precisava trabalhar ou que estivesse esperando o vizinho chamá-lo para um carteado. Olhou profundamente tudo aquilo, aquela situação e lembrou-se do que escrevera naquela tarde que o casamento havia sido um erro e será que havia sido mesmo? Sem ele não teria tido os filhos ou teria com outro, e que vida levaria com outro que não fosse aquele do controle remoto sentado em frente à televisão, agora olhando para ela sem entender o porquê do beijo na testa e sem perguntar nada, como sempre fazia.

Olhou para o papel em sua mão e voltou para a mesa para riscar aquele “em vão”, porque não foi em vão. Agora depois dos cinquenta não era possível estar pensando naquelas bobagens que escrevera em despedida e releu miseravelmente linha por linha, palavra por palavra, que, sem um erro sequer de gramática ia tecendo um longo fio de desilusão como tinha sido o seu casamento e pensou que talvez fossem os hormônios a lhe perturbar a existência e imaginou-se novamente na cama sem ele.

“A primeira noite sem você” escrita no último parágrafo daquela carta talvez absurda do sentimento de despir-se, de livrar-se, de largar tudo foi o que a fez parar de escrever de supetão, pois vinha fazendo as despedidas imaginárias numa loucura desenfreada até aquela simples frase aparecer escrita, viva, latente e pujante em frente aos seus olhos. Dobrou a carta.

Não queria mais ver aquela frase. Dobrou novamente e guardou no bolso do casaco. Pegou a caneta e olhou para o marido; recordou minuciosamente o dia do seu casamento e do quanto estava feliz, do quanto estava realizada ao entrar de mãos dadas na casa com ele. Sentia as mãos fortes a lhe apertarem as suas e o cheiro das rosas miúdas de seu buquê abraçou aquele momento como um despertar para o futuro. Fora ele a desabotoar os inúmeros botões de madrepérola que lhe fechavam o vestido nas costas e dizia Para que tanto botão e por que tão pequenos? E ela ria-se da dificuldade daquele que estava ali em sua frente com a televisão desligada e calçando os chinelos numa atitude de prostração perante a vida, teria ele também essas lembranças? Saía de sua respiração uma ofegante vivacidade e vinha em sua direção, mas não tinha mais os botões a serem abertos e tampouco sabia o que ele queria.

Pois ele veio dar-lhe um beijo em sua testa. Talvez em agradecimento àquele de outrora, aquele do arrependimento daquela frase da primeira noite sem você ter sido escrita tão levianamente e o pensamento de ele descobrir a carta em seu bolso, porque já então a beijava em sua boca e pegava em suas mãos, aquelas mesmas mãos quentes e fortes e toda a despedida alucinada daquelas linhas loucas e vãs desmereceram todo o crédito possível do amor cansado.

Uma das mãos segurava a carta com medo e insegurança e a outra acarinhava o pescoço do marido que a fez levantar-se para um abraço demorado e sem receios, aquele abraço ingênuo por não saber da carta e dos pensamentos da mulher, aquele abraço de trinta e cinco anos a fio, cujas palavras não precisariam ser ditas porque não precisaria nunca de palavras e aquelas despedidas imaginárias foram sendo esmagadas, esfoladas como faz o tempo com relação às coisas vãs.

A primeira noite sem você despertou à vida.







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