quarta-feira, 29 de março de 2017

Durante a festa



Por Michele Calliari Marchese

Foi no meio de uma festa agitada que ela percebeu finalmente o sentido das palavras de Virginia Woolf em seu livro Mrs. Dalloway.

Havia lido o livro há muitos anos e lembrava que um livro inteiro fora escrito para descrever um, apenas um dia na vida de uma mulher – Mrs. Dalloway. A protagonista estivera às voltas naquele dia para preparar uma festa, um jantar com convidados, e lembrava que toda a vida dela se resumira àquele dia da festa. Assim como ela se sentira naquele dia em que finalmente iria a uma festa.

Tivera muito cuidado na escolha da roupa, da maquiagem, do cabelo e dos sapatos. O dia inteiro envolveu-se nisso como se fosse o último dia de sua vida, cheia de energia e entusiasmo. Aprumou-se em ficar com o corpo ereto o mais possível e pensando em seus pensamentos de mulher que dançaria nos momentos propícios, cantaria junto se soubesse a música, seria feliz e amaria ainda mais o marido.

Saiu de casa sentindo-se livre e bonita, com a cabeça vazia de outros sentimentos que não fossem o de se sentir assim, não a preocupava nada, não tinha com o que se preocupar e olhou o marido com eterna paixão. Pegou em sua mão e perguntou-lhe por que fazia quinze anos que não saíam ou por que deixaram de fazê-lo. Por inúmeros motivos, ele respondeu. E foi só.

A festa estava linda e aconchegante, muitos amigos e conhecidos que cumprimentavam e perguntavam sobre as coisas de sempre e foi servido algum petisco como entrada e água em garrafinhas redondas e azuis que faiscavam com o jogo de luzes que se reproduzia no palco onde os músicos tocariam. Não perdeu nenhum detalhe e sentiu-se só.

Não fazia sentido sentir-se só e a esse pensamento alguma coisa quebrou dentro de si abrindo uma estrada longa sem saída e sem chegadas. A música começou muito alta a princípio depois baixaram um pouco o volume e as luzes que piscavam e rodeavam as gentes que estavam lá, algumas já bêbadas, pensou: como isso é possível se a festa recém começou?

Um casal abraçou-se ao seu lado e beijou-se no calor da música do grupo ABBA e ela olhou aquilo como se fossem de outro planeta, perguntou-se onde estivera todo esse tempo, sem ver casais se beijando normalmente pela paixão que sentiam um pelo outro e olhou o marido a dançar do seu lado com o gingado que ela conhecia tão bem e repetiu-lhe os passos para acompanhá-lo e ele pegou em sua mão fria causando um calafrio de vida a percorrer-lhe as entranhas.

O marido a beijou e ela o envolveu em seus braços, feliz que ele estava em também compartilhar aquele momento de beijos com o casal ao lado, feliz que estava em gingar o corpo sem gingado e dançar a música que entrava em seu peito como uma arritmia do coração.

Ela foi ao banheiro e uma lufada de vento frio a fez ver muitas das coisas que jamais teria visto ficando em casa; a noite agradabilíssima, as roupas modernas e ajustadas em corpos que nunca vira antes, a presença constante da solidão e pessoas fumando no saguão da entrada; bebendo à vida, rindo e sorrindo diante de outras pessoas, respirações balouçando ao sabor de um piano que se sobressaía na música dos Bee Gees. Enquanto lavava as mãos  uma garota desconhecida balbuciou palavras ininteligíveis para ela e outra conhecida que a olhou, porém não a cumprimentou. Coisas e atitudes que jamais entenderia em vida e ajeitou a barra da calça que ficara presa no sapato, ajeitou o cabelo numa tentativa vã de baixar os fios que cresciam em torno da testa e ficou feliz com o resultado de sua aparência e o vazio daquela estrada cavada à mão, aquela que se abrira num rasgo logo que a festa começou e estava sendo preenchido com mais e mais vazio como se fosse possível pegar com a mão e enchê-la até a boca para tapar todas as frestas e buracos e ranhuras que o tempo deixa com o passar de seus próprios passos.

Voltou para o marido que estava sentado bebendo e olhava para ela em sinal de admiração e nem isso fora capaz de aplacar a lâmina afiada e cruel daquele dia em que se resumira não toda a sua vida, mas uma parte considerável dela. Há quanto tempo não saía, pensou, não poderia ter esse sentimento de perda irreparável dentro de si no lugar das palpitações da música do Toto. Sentou-se ao lado dele e bebeu também para esquecer, como dizem os bêbados.

Saíram a cumprimentar amigos no outro lado do salão e conversaram as coisas de sempre, as mesmas coisas, como estão, onde estão as crianças, estão se divertindo, venham sentar conosco e decerto que não se poderia conversar sobre assuntos interessantes no meio de uma festa ao som alto dos Scorpions, mas ela almejou trocar ideias mirabolantes sobre o universo e outras coisas mais e ressentiu-se quando a esposa do outro entendeu tudo errado quando ela lhe afirmou que era bom vê-la assim alegre e bonita e então passaram-se bons minutos sem ter aquele sentimento verdadeiro da ineficácia do sentido de estar numa festa.

Eram quatro horas da madrugada e num assomo de cumplicidade os dois se convidaram para voltar para casa e assentiram na risada da coincidência e despediram-se dos amigos e dos conhecidos que foram ficando para trás, na festa que agora ia ao som de Roxette. O saguão estava na penumbra, o corrimão da escada seguia frio e os degraus continuavam ásperos como sempre, porém ficaram para trás assim como as portas a calçada e a rua e então ela lembrou-se por que fazia quinze anos que não saía mais para uma festa e seus passos continuavam levando-a para longe, sempre em frente e agora, pensou, seriam mais quinze anos?




© 2017 Blog Sem Vergonha de Contar - Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do(a) autor(a). 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Caro(a) Leitor(a), comentários são responsabilidade do(a) comentarista e serão respondidos no local em que foram postados. Adotamos esta política para melhor gerenciar informações. Grata pela compreensão, muito grata por seu comentário. Um abraço fraterno, volte sempre!