quinta-feira, 6 de abril de 2017

O gato no colo


Por Michele Calliari Marchese

Tinha um gato no colo. Era amarelo e ressonava no ronronar da tranquilidade entre os carinhos daquelas mãos calejadas e cheias de lembranças e o sono felino cujos sonhos jamais foram comprovados. Mas o que são os sonhos? Reflexos do dia a dia? Reflexos da intimidade interior? Imagens e apenas imagens para mostrar-nos que estamos vivos? Pensava que talvez os gatos sonhassem como as gentes e tivessem lembranças como as gentes e se ressentiriam de algo ou alguém por algum momento infeliz vivido anteriormente. Ela olhou para fora da janela e viu as parcas folhas das árvores naquele outono miserável que balouçavam placidamente como a sonhar também com dias melhores, com menos ventanias, raios e outras intempéries que as fariam perder o contato umbilical com a sua mãe. Brotam, embelezam o tronco e caem, apodrecendo no chão. Notou uma pequena semelhança em tudo que é vivo. Sempre o mesmo fim para todos.

O gato remexeu-se em suas pernas, tanto ele quanto ela estavam cansados daquela posição, ele ousou-se, porém ela tinha medo que ele saísse de cima de seu corpo carente e necessitado de respostas que iam muito além das simples perguntas que se fizera antes, muito antes, talvez antes mesmo de ter um gato amarelo que dormiria em suas pernas e não se mexeu. Não quis conspurcar aquele sono cheio de enlevo e entregas. Não se mexeu também porque tinha ideias na cabeça que estava prestes a encontrar o fio da meada para então desembaraçá-lo e entender o que jamais entendera em vida e o porquê de tantos questionamentos acerca dos outros, jamais acerca de si, pois o “si” lhe imputava o maior dos medos possíveis, aquele do conhecimento, do ser enfim sendo o que se é sem ser amarrado pelas máscaras da sociedade ou da cultura do nascimento, carregando incontinenti toda a carga genética de pai, mãe e toda ancestralidade possível. Quando ela ousaria? Talvez nunca ou talvez fosse o momento, aquele de agora, não o de antes, o de afagar o gato pensando se ele sonhava com lembranças de outrora.

Tinha na mente e isso era frequente a sua busca pelo saber muito, ou quase nada ou nada porque não se tem a concepção exata do que é a vida como uma verdade padrão, como quando se mede a pressão arterial, não há verdades absolutas para a vida e para o ser humano, e nunca para um gato amarelo ressonando num colo vazio porque as crianças cresceram e não há meias brancas para lavar, brinquedos para ajuntar e o sorriso para acalentar as difíceis perguntas sem respostas que enchiam o silêncio de estupefação diante da própria vida e agora tinham as vidas deles, cheias de afazeres e seus próprios filhos a lhes sugarem respostas tardias.

Perguntou ao gato se aquilo que sentia era alguma variante da solidão e lembrou-se de quando um dos filhos acordou chorando muito porque tinha tido um pesadelo que o pai contara que ela tinha morrido e lembrava que além de abraçar aquela criança com toda a força do seu amor para que ele se sentisse seguro e que não poderia ser verdade aquele sonho, também derramara lágrimas de iminência de morte, pois como faria com o pequeno se morresse? Afinal esses sonhos existem apenas para encrespar-nos a alma de uma melancolia tão profunda quanto a solidão sentida no meio de uma multidão de amigos num jantar. O dia chega a ficar nefasto e nefando.

Talvez pensasse porque não tinha o que pensar, talvez elucubrasse coisas porque não tinha o que fazer com a cabeça dentro daquela casa enorme e vazia da própria solidão que ficara para trás quando se casou. Deveria, pensou, encontrar alguma coisa que fizesse com que se sentisse sem os pensamentos que a atormentaram por quase toda a vida, aqueles questionamentos que não há necessidade de ter, aqueles medos monstros que limitam as pessoas e seu palpitar pela vida e pela natureza, onde estava quando tinha seus dez anos? Ou nos seus vinte? Nos trinta? E fez uma confissão consigo mesma sem estar de joelhos ou perante algum religioso, confessou-se pelo saber de menos sobre si.

O gato arranhou suas pernas avisando-lhe que estavam dormentes. Será o saber demais esse arranhamento impertinente ou será o de menos que nos sentimos incomodados quando chegamos alhures e jamais queremos chegar lá onde caem as folhas das árvores quando já o outono as carrega para todo o sempre, ou simplesmente nunca deveríamos saber. A ignorância chega a ser salutar nesses momentos cruciais de transpor o portal da consciência infinita sobre si, apenas.

Oras, e se tudo não fosse apenas lamentações de uma mente que pensa demasiado sobre tudo, sobre os outros e sobre si acovardada quando chega no “sobre si”; deixar de pensar nos mistérios da vida interior e pensar em como ensinar a mente sobre assuntos novos, palavras cruzadas, viagens, um jantar em família, lavar as meias brancas dos netos, ajuntar então os brinquedos deles que se findam pelo chão e o mais óbvio: ajuntar as folhas caídas das árvores pensando apenas que caíram, nada mais, nada além de finitudes limitadas.







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