Por Michele Calliari Marchese
Esse causo é verdadeiro (como todos os que escrevi até hoje) e começo
com ele: quando eu tinha perto de uns oito anos e voltava para casa do colégio,
caminhava tranquilamente pela calçada quando uma mulher, que vinha em sentido
contrário, apareceu à minha frente calçando chinelos de dedos cujos dedos dos
pés apresentavam enormes unhas pintadas de verde; um verde exército (um verde
oliva para ser mais exata) e aquilo me chamou tanto a atenção que bati a cabeça
num poste e caí logo em seguida. Há quem ria, porém, há quem chore, como
aconteceu comigo. Além do galo na testa e a poupança dolorida, fiquei com asco
de postes.
Claro que essas coisas não acontecem só comigo ou com os distraídos
ocasionais; acontecem com todo mundo de forma que variam entre leves – cujas
risadas se atém dentro da boca – e as formas mais graves, cujas gargalhadas
podem ser ouvidas pelos quarteirões afora.
Tropicões, esbarrões e afins estão em nossa carne e não adianta manter o
foco, tem sempre uma ponta da lajota da calçada que sai do prumo para que você
perca o foco e o equilíbrio, indo parar alguns metros à frente para depois
olhar para todos os lados para ver se não tem ninguém olhando em seguida passa
a rir sozinho morrendo de vergonha, porque todo mundo sabe que sempre tem
alguém que enxerga as coisas que não são para enxergar.
Outro causo verdadeiramente verídico foi quando (já adulta) desci
correndo – com a pressa que todos os jovens têm – umas escadas do capeta, e,
dei de cara com uma baita porta de vidro obviamente fechada me fazendo cair de
novo para trás. Sorte que naquela época os prédios comerciais não tinham
câmeras de monitoramento e mais sorte ainda que não havia ninguém do lado de
dentro que presenciasse tão dolorido momento, mal pude levantar-me. Chorei um
bocado. Fiquei uma semana com um risco no rosto que cortava de bochecha a
bochecha e a poupança também teve o seu momento “déjà vu”.
Com o advento das lixeiras de rua, devemos estar o menos distraídos
possível (mesmo que os celulares não deixem) para que possamos passar
incólumes pelos diversos obstáculos que um simples passeio nos proporciona.
Distrair-se é inato e creio que esse adjetivo deveria estar presente nos
elogios do dia a dia: “Como você é simpático e distraído”, diríamos nós, ou
então: “Eu sou relevantemente distraído”, numa entrevista de emprego. Nunca vi
um livro de autoajuda para distraídos, mesmo porque eu não leio livros de autoajuda,
de modo que é uma boa ideia para aqueles que gostam de escrever esse tipo de
livro, garanto que na distração comum diante de tantos livros numa banca, seria
possível passá-los despercebidamente para que ajuntem o pó dos anos nas
prateleiras e na distração esqueçamo-nos de comprá-los.
Para tropicar tem que ter jeito. Tem que nascer com o dom de tropicar.
Tem até uma música que cantávamos quando crianças e me lembro dessa parte: “Ai
ai ai quem tropica também cai, tropiquei no pé da mãe e fui cair no pé do pai”,
tropicar não é para qualquer um, tampouco o resbalão que, acreditem, é uma
palavra estritamente regional, não é para qualquer distraído. Nem sei por que
escrevi isso já que todos sabem da linguagem regionalista aqui do sul do mundo;
fina, elegante e delicada. Quando enviei um conto recheado de “resbalões” para
um site luso-brasileiro, choveram perguntas em meu post sobre o significado da
dita cuja da palavra “resbalão”. Oras, resbalão é resbalão e ponto final. Só
quem vive resbalando é que sabe o que é resbalar, porém no corretor do word
onde escrevo, automaticamente troca resbalão (que eu amo) para resvalar
(horrível). Nunca resvalaria por aí, distraidamente. Eu sou da Campina da
Cascavel e, portanto eu resbalo.
Há quem nunca tenha tropicado na vida, ou batido com a cabeça numa
lixeira, geladeira, postes ou portas de vidro, e por estes eu tenho verdadeira
admiração. Meus parabéns. É difícil isso, viu?
Há os desastrados, porém não fazem parte do meu escrito de hoje.
Há quem tropique todo santo dia e eu tenho verdadeira comiseração por
eles, porque sou uma destas que vive resbalando, tropicando e caindo por aí,
talvez por pura distração, talvez por problemas nas vistas, talvez porque nasci
assim. O certo é que dou muitas risadas quando acontece uma forma “leve” de
tropicão e também choro muito nas formas mais graves; de qualquer jeito todos
os encontrões remetem-me àquela primeira vez, a do poste, a das unhas
miseravelmente enormes e todas as dez pintadas de um verde inesquecível que me
distraíram do meu trajeto infantil fazendo com que me encontrasse cara a cara
com um poste de luz, na calçada, perto de casa.
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