quarta-feira, 21 de junho de 2017

A Proposta

Por Helena Frenzel

Na maior parte do tempo te acusavas de falar demasiado. Teu problema, no entanto, sempre foi ouvir demais. Eram vozes, muitas vozes, miríades, caos; muito barulho em tua cabeça, confusão mental era tua queixa-mor. Não sei quantas vezes te vi rolar pelo chão e encaracolar-te buscando um canto. Era evidente o tanto que precisavas de silêncio, nem o ar parecia te ser mais necessário do que aquela pretensa paz, buscada a cabeçadas nas paredes, para depois, o torpor.
Tantas vezes testemunhei como tentaste prescindir da vida e dos ruídos, da existência e da razão. E tinhas razão! Era necessário que tu, que demonstravas querer calar todas as vozes, incluindo a tua, que tu, que tentavas aquietar sem dizer mais nada, que tu...
Bem, algo seguia movendo tua mandíbula, obrigando-te à produção de surdos sons semânticos, pragmáticos, esses sons e barulhos, burburinho e ruídos, esses gritos que nasciam de desabafos e refletiam a tua tão somente tua resignação ao prático, tudo incluído no teu “sim” de todos os dias e algo que te obrigava a ele. A vida, o sustento à família?, me pergunto. Fosse o que fosse, era sempre algo externo, sempre algo para já, quem sabe uma doença dessas dos tempos maus modernos, vá saber...
“Se é loucura ouvir vozes”, te perguntavas. Não. “Obedecê-las ao ouvi-las, isso sim, seria” e era o que proclamavas porque era o mais sensato e a manifestação de um espírito livre, tudo aquilo que tu não és.
Sempre haverá alguém para distribuir ordens, ordens e conselhos não pedidos, ordens e conselhos não solicitados e opiniões, ordens, conselhos não desejados, críticas sem construção e opiniões vazias, coisas que não pediste nem precisas, artefatos comprados com dinheiro mal-lavado, sem os quais podias viver, ou poderias, e em meio a esse clima ela ainda achou de vir à tua casa, não bastou ter telefonado pela manhã.
E veio com aquele risinho debochado, com aquela arrogância tão comum de insensíveis mercenários, com aquela expressão não só de estar, porém de achar-se ser mais e melhor. Entrou com o queixo erguido pois tinha as chaves, seguiu com o nariz por cima, olhando por baixo dos cílios, pintados, registrando a desordem do local. Se não havia ordem em tua cabeça como porias ordem em teu espaço? Bobagem, não? Ela parou no meio da sala e girou nos calcanhares sobre finos saltos de marca; o piso de tacos protestou e não foi o único, um dos companheiros tapou os ouvidos para evitar aquele ruído de unhas riscando quadros de colégios muito antigos, coisas de anos atrás. E ela olhou para ti fazendo um bico de nojo, como quem diz: “O inferno é mais limpo que este teu cubículo!” e não reagiste. Vestia um casaco de peles, talvez autêntico porque era má, e era inverno, trazia os braços colados ao corpo, como temendo qualquer contato e uma certa contaminação com teu espaço. Abriu a boca e disse: “Eu, em teu lugar...” e com um olhar de falsa pena e polidez muito treinada continuou o discurso, o que te tirou do sério e fez tapar os ouvidos, suplicando em fracos gemidos que te deixasse em paz. Tua boca se movia como se estivesses protagonizando um filme mudo, nenhum som inteligível saía com força de ti, mas era claro que gritavas mudamente, tinhas uma expressão transparente de dor. Era como se dissesses: “Tu, em meu lugar, não farias nada disso! Tu, em meu lugar, não obrigarias ninguém a nada! Não era a tua boca a que eles maculavam, não era o teu corpo que deixaria de ser teu, abandonado pela alma no inferno desses momentos.”
Foi grande o teu desespero ao notar que nada a faria calar e tua cabeça parecia latejar no ritmo alucinante que teu corpo denunciou, em tremores. Os tacos gemeram sob teus pés nervosos, tapaste os ouvidos com as mãos em concha e deste com a testa na parede, tantas e tantas vezes até que te viraste e tomaste o vaso e... quebraste o espelho, e lá perdemos o primeiro plano.
“E não sejas dramática!”, ela exclamou com voz camuflada de compreensão. Temi até que seriamente te machucasses. Há tempos havíamos notado que não existia um só quadro em todo o teu apartamento, isso logo me chamou a atenção, não havia em teu cubículo nada pessoal, tu tentas não deixar marcas, buscas tão somente existir sem cultivar nada, mas tuas crises denunciaram teu forte desejo de pedir ajuda. Tu sofrias e eu —acreditas?—, sofria contigo. Eu sofria, mas não podia me intrometer, não ainda. Nada neste mundo, neste país e neste cubículo, nada dentro de ti seria capaz de remeter-te ao vazio que poderia salvar-te, isto disseste uma vez, lembras?
Mas não, tu não a ouvias e ela seguia, e assim seguiram naquele crepúsculo. Ela, com as cobranças e a narrativa porque diálogo em que um só fala não é diálogo, porque ouvir perde o sentido e o tato e o cheiro e o paladar, sem falar da vista. A um cego não passaria despercebida a tua dor, mas a ela, a cega que tanto via e sempre tinha razão e tudo sabia melhor, ela não perceberia jamais...
“E ventila este quarto e abre a janela e deixa de fraqueza, e reage e te maquia, corta o cabelo e te veste melhor, e te move e te mexe e faz o que eles quiserem porque eles mandam e não tens que reclamar, e telefona e me conta e pede instruções e me deixa saber de tudo e deixo aqui dinheiro para as despesas e o contrato, pois sei que tu consegues, e aproveita a chance e compra um perfume caro porque eles querem uma Barbie. A geladeira está vazia e não digas que me equivoco, ou queres dormir na rua? É muito frio, eu em teu lugar...”
“Não!”, desta vez gritaste. Parecia haver vozes, muitas vozes em tua cabeça, não é verdade? E ela seguia com mais sugestões: “Aprende a fazer yoga, que melhora a circulação, e pilates, que ensina a respirar e mantém o corpo esguio e...” “Há quanto tempo não respiro?”, gritaste tentando interrompê-la uma vez mais. Há quanto tempo não saías para caminhar e tomar ar puro? “Sei que as veredas me salvarão”, continuaste e eu completei: “Porque o bosque salva as almas da perdição de homens e mulheres, de maridos traídos e de filhas sem pai nem mãe e dos ruídos e da resignação aos superiores e do medo de todos os modos, físicos e psicológicos e, o mais importante: produz tempo para pensar, mas, para pensar, antes, era preciso calar as vozes!” Meus companheiros, neste momento, me olharam estarrecidos e se preocuparam, tão grande era a nossa conexão, a minha contigo. Podias sentir-me?
Ela te ignorou e, num surto, ou numa overdose de coragem, não hesitaste e tiveste a ação de, em frente à lareira, virar-te e pegar o ferro e usá-lo, primeiro batendo nos ombros para desviar as tentativas de defesa dos braços e jogá-la contra a parede, feito uma aranha, depois empurrando com força, em giro, bem no estômago ou bem no coração, com uma força que eu não imaginava que tinhas em ti e cheguei a sentir o ferro vencer a resistência das carnes e sair diagonal do outro lado, forte e vermelho como o sol que se punha lá fora e anunciava bom tempo para o dia seguinte.
Cessou o grito. Por alguns segundos ficaste parada, o cabo do ferro em tuas mãos. Então soltaste o cabo e foram as duas desabando, ela sobre o tapete, sujando a parede de sangue e tu, sobre o sofá. 
Ficamos petrificados com a tua performance e, embora acostumados a coisas horríveis, surpreendeu-nos tua reação, te juro. Há uma câmera sobre tua porta, uma câmera guardiã, como chamamos, vês?
Teu destino era o ouvir e não o falar, era obedecer sem questionar, mas as vozes tiraram tua sanidade e num segundo tudo transbordou, como sempre transborda. Se não sabes o que te moveu de fato, nós tampouco.
Olhavas o tapete por entre os dedos, com os quais tentavas inutilmente tapar teus olhos, boca e ouvidos, como num tipo de máscara de tortura. Passaste um bom tempo muito quieta, parecias não saber o que fizeste, fitavas o rio vermelho criando afluentes no tapete branco naquela sala alugada a seiscentos por mês. Claro que nos informamos também do preço e da vizinhança, quem pensas que somos?
Fitavas a cara dela sem vida, retorcida num grito sem expressão. Tudo nela era postiço, dos seios aos cílios, das unhas ao sorriso, do amor à proteção. “Talvez me invejasse”, chegaste a murmurar, “quem sabe odiasse até”. Estou contigo nesta tese.
E em poucos minutos testemunhamos que um sentimento prático moveu-te a enrolar no tapete o cadáver e a acender a lareira e a esconder nas brasas evidências e o ferro, a livrar-te de uma vez por todas das ordens, das ordens e conselhos não pedidos, das ordens e conselhos e opiniões, das ordens, conselhos, críticas e opiniões vazias, de tudo o que não pediste nem precisas, artefatos sem os quais podias viver, ou poderias, e em meio a esse clima foste até a cozinha e apanhaste os sacos e os panos e os baldes e o rodo e a fita adesiva e deste graças ao fato dela ser mignon. Como alguém  tão miúdo podia ser tão sem escrúpulos? Isso nos perguntamos também nós. Os melhores perfumes nos mínimos frascos? Não, o cheiro que emanava dela era enxofre puro, disseste uma vez. Talvez tivesses apenas imaginado, mas...
Ao término do trabalho já não havia luz lá fora, esperarias a madrugada para pegar o carrinho de compras e descer até a garagem, tapetes persa estavam em promoção e eram apreciados no mercado das pulgas, o bosque não estava tão distante e... Bom, disto sabemos porque um de nós já esperava lá fora, esperava desde o momento em que ela entrou. De volta ao apartamento, teu problema seguia sendo o que fazer com as vozes que te assolavam, não? E quando, ao menos momentaneamente, haviam calado as ordens, ligaste o som e te puseste a ouvir Ravel.
Não me olhes com espanto... Sou erudito porque cursei artes cênicas antes de fazer o que faço agora, os colegas não me estranham mais, a vida dá voltas e esse é o meu tom natural: cínico, distante? Não, fato é que depois de Ravel baixaste a tela do laptop, nosso terceiro plano, e não pudemos ver o que fizeste depois, mas o que tínhamos gravado nos bastou e não quisemos esperar o próximo crepúsculo para procurar-te e fazer a proposta. Como vês, não te denunciamos nem vamos denunciar, ela era um ser humano desprezível, então fica elas por elas. Ocorre que tua clientela vale muito e estamos certos de que podemos negociar.

Tentar o suicídio é bobagem, moça, sei que queres a vida, só precisas de alguém que te tire deste lamaçal, podemos ajudar-te e isso eu garanto. Eu, em teu lugar, pensaria melhor... Afinal, liberdade é um lenço muito fino, quase invisível, e que vive passando de mãos em mãos, não concordas? Tão fino que chega a confundir-se com cordas, cordas que nas costas nos dão, ou enforcam... Vivemos nas sombras e ouvimos até as vozes em tua cabeça, quem acreditaria que existimos? Mas uma coisa te digo: estás sempre livre para escolher.


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